O quarto era amplo, confortável, agradável. Todos os ambientes da casa foram decorados por um profissional, sem nenhuma interferência de Paulo, mas Dolores era mulher refinada e discreta, e nada na casa era exagerado ou de gosto duvidoso, a despeito das insistências e irritações do decorador. A cama ampla, em madeira de cor discreta, em linhas modernas, sem nenhum entalhe ou adorno, embora de estilo diverso, incrivelmente harmonizava-se com a cadeira de balanço, daquelas tradicionais com palhinha, que raramente balançava.
O colchão fora escolhido, sob medida, para o peso e conforto do casal, e era delicadamente repousante. A iluminação era plural, de modo a deixar o quarto com a claridade adequada ao momento de uso. Os dois pontos de luz do quarto mais utilizados eram direcionados às extremidades direita e esquerda da cabeceira, para o conforto da leitura. O ar era inaudível, domótico, e a temperatura, sempre agradabilíssima.
Os lençóis, de fino e macio algodão egípcio, cobriam sempre com uma delicada carícia que descobria o sono. Apenas um quadro ornava o quarto: uma Sagrada Família, de autor pouco conhecido, mas peça original, única, que encimava a cabeceira da cama.
Naquela, noite, Paulo apagou o foco do seu lado, pôs Baldwin na cabeceira e olhou para George Orwell, nas mãos de Dolores. Quis perguntar algo sobre 1984, mas preferiu perguntar pela filha.
– Dolores, tem notado algo estranho em Beatriz?
– Nada de mais. Ela sempre pareceu-me meio estranha.
– Dolores, você tem usado o computador, recentemente?
– Para quê, Paulo? Você sabe que eu não preciso de computador.
– Se você fosse igual a todo mundo e usasse o computador, iria notar que Beatriz vem sempre deixando uma página aberta, e talvez compreendesse por que ela lhe parece estranha.
– O que você quer dizer com isto: ela está fazendo parte desse pessoal que produz fake news para enganar a população?
– Não, Dolores! Talvez nem seja grave! Toda vez que vou usar o computador, está lá uma cena de sexo explícito entre duas mulheres.
– O que você quer dizer com isto: que nossa filha faz parte de um grupo em defesa da homoafetividade?
– Não, Dolores, eu quero dizer que ela é lésbica.
Nesse momento, o ar condicionado, comprado depois de exaustivas pesquisas de qualidade, pifou.
Dolores não acreditava no que ouvia, não sabia o que dizer, e Orwell, que era tão querido, foi atirado ao chão.
– É isso mesmo, Dolores. Melhor ir-se acostumando, pois não há dúvida nem retrocesso. Beatriz tem 23 anos: é quase bonita, muito feminina, tem o corpinho arrumado, tem senso de humor e é inteligente. Por que será que nunca namorou, não tem um amigo homem, essa casa vive tomada pelas garotas, está sempre abraçando as amigas com excesso de carinho, tem sempre uma colega dela dormindo aqui? O que você queria?
— Aumente o ar que está subindo-me um calor de dentro...
— Já tentei. Está quebrado!
— Como? Sempre foi a única coisa perfeita desta casa, nunca deu problema, por que resolveu pifar, logo agora?
– Porque a vida, Dolores, não é autocontrolável. A vida acontece. A vida se quebra.
– E como você tem tanta certeza, Paulo, que a sua filha é gay?
– Porque, fatigadas as minhas retinas com tantas imagens lúbricas, eu perguntei a ela, e ela revelou tudo. Sabe Marília? É namorada de nossa filha.
Neste momento, o delicado algodão desperta no corpo aquela comichão que só o linho grosseiro costuma provocar, e Dolores joga o Egito no chão brasileiro.
– Você fala como se nada estivesse acontecendo, como se fosse tudo natural.
– Ora, Dolores, você sempre defendeu as minorias, o direito à escolha ou assunção sexual.
– E continuo defendendo! Mas precisava ser com minha filha?!
– Oxente! E suas crenças só servem para os filhos dos outros?
– Não é isso! Eu nada tenho contra os gays, até os admiro. O problema é que, neste mundo discriminatório e preconceituoso em que vivemos, principalmente agora, que a barbárie resolveu sair do armário, um gay está sempre correndo riscos de todo tipo, inclusive de vida.
– Mas qual é a saída? Ficar esperando que o mundo seja civilizado e respeite os direitos humanos? Viver sufocando a homofetividade é também um risco: um risco de morte.
– E quem vai dizer a meus pais que a neta deles é gay?
– Seus pais não têm a menor importância: o que importa é nossa filha.
Sem vento algum no quarto, a cadeira de balanço começa a balançar-se sozinha.
– E meus netos? Quem vai me dar um neto, Paulo?
– O que é isto, Dolores?! Nunca pensei que você fosse tão egoísta!
– Egoísta é a sua mãe, seu cachorro!
– Calma, Dolores! E mesmo que Beatriz fosse heterossexual e casasse, quem garante que ela teria um filho?
– Eu!
– Use a razão, Dolores! Beatriz poderia revelar-se estéril, ou o marido dela; ela poderia não querer ter filho, ou o marido dela... Quer dizer que um filho só serve se puder dar um neto?
– São hipóteses, Paulo; minha filha é normal e teria filhos... Quer dizer: eu pensava que era.
– Dolores! Nossa filha é normal; por favor, não fale assim!
– Eu nunca pensei que você fosse assim. Sempre me pareceu um conservador, um pouco liberal, mas sério, recatado...
– Eu sou o mesmo, Dolores.
– O que você parece ser mesmo é um sem-vergonha!
– Bem, Dolores, já que você perdeu o controle, não há mais o que perder, vou dizer tudo de uma vez.
– Não me diga que está com uma amante?
– Não, Dolores. Eu sou gay.
Neste momento, faltou luz.
– Você está brincando, não é?
– Não, Dolores: nunca falei tão sério.
– Por que você apagou a luz, Paulo, precisa ser covarde assim?
– Eu não apaguei nada. Faltou luz.
– E o gerador?
– O gerador, Dolores, é como a vida: um dia se quebra.
– Pra você, seu safado, tudo se quebra, tudo agora é natural! Engraçado: a vida sempre foi leveza pra você.
– Não: para mim, a vida foi quase sempre dolores.
– Dolores queria chorar todo o pranto da vida, mas como nem mesmo a vida de um indivíduo está de plantão para os seus próprios desejos, como até o pranto se quebra, um entalo tomou conta de Dolores, e respirar começou a ser uma tarefa difícil.
– Bem: pela primeira vez, em anos, sinto-me aliviado. Aliviado e honesto. Graças a Beatriz, estou sendo sincero com você.
Àquela altura, o homem bom que Paulo houvera sido durante tantos anos tinha se convertido num bandido, num traficante, num potencial assassino; de repente, ele era uma ameaça para Dolores. E Dolores entendeu que deveria vingar-se até de si própria.
– Pois bem, Paulo: quem diz o que quer, ouve o que não quer: graças a você e a Beatriz eu vou ser sincera, para também sentir-me honesta e aliviada: Beatriz não é sua filha.
Antonio Morais Carvalho é professor e poeta