Pimentinha era o seu apelido, uma velhinha, deficiente visual, uma pedinte que perambulava pelas ruas de Alagoa Grande, cidade onde nasci. O Beco do Jacu era a sua passagem obrigatória para se recolher nos finais de tarde. Lá, os meninos da época a provocavam quando passava. E, quando vinha uma resposta dela, podia esperar-se, era carregada de palavrões.
Pimentinha não nos via, mas éramos enxergados por ela. Aqueles encontros pareciam fazer parte dos finais de tarde. Aquelas tardes compartilhadas pelos nossos encontros significavam a constituição de uma rotina que já tinha forma habitual. As suas condições de mulher sofrida despertavam a nossa atenção. Contraditoriamente, sabíamos que, apesar dos palavrões, era uma pessoa ilibada, e, por isto, as suas horas nos atraiam. Havia nelas uma rara descontração, quando percebíamos que ela nos conhecia pela voz. "É filho de Fulano de Tal". E assim, vivíamos, fazendo parte da vida dela e vice-versa.
Aquela mulher simples e que não aparentava os seus sofrimentos, (talvez nem os sentia), certamente, porque não aprendera a fermentar e acumular no sensório o acre da vida.
Gostava dela! E sobre esse sentimento, não teria tanto tempo aqui para explicar de forma mais profunda. Gostava, sim. Aliás, gostávamos todos, e era real. Não para fazê-la sofrer, mas para fazê-la ingressar na nossa vida simbiótica e, além de umas moedas que lhe dávamos, fazê-la integrada às nossas vidas, a vida daquela mulher simples que se tornou pra nós personagem de nossas veleidades e traquinadas de fins de tarde. Havia uma notável interação (aparentemente indesejada da parte dela), no entanto, bem afinada com os meninos que importunavam os seus caminhos.
Acho que, sem querer, Pimentinha chegou a gerar uma sinergia agradável, ingressando-se num diálogo singelo, suavemente áspero e silencioso, mas que massageava o ego dela e o nosso, e retirava a capa da dureza do mundo, de um certo modo, a estabelecer um tipo assim de convivência "inexoravelmente agradável" entre nós e a vida, inclusive, a dela, dessa velhinha que nada via, mas que parecia enxergar muito mais do que nós todos.
Certo dia, de volta para casa, pelo mesmo lugar de sempre, Pimentinha sentiu a nossa ausência. Notou a falta de quem tanto "importunava" as suas caminhadas. Parou! Aguçou os ouvidos lentamente, empinando o pescoço de um certo jeito, como se olhasse, cegamente, para o céu da tarde já acinzentado, e bradou em voz alta e estridente, os mais pesados palavrões, evocando a nossa presença naquele horário de encontros pontuais.
Quando tomei conhecimento, fiquei imaginando quanto vazio ela havia sentido na aspereza e na solidão daquele fim de tarde! E, por isto, ficou indignada, reclamando de nossas falíveis assiduidades. Enfim, pouco sabia que os costumes, vez em quando, também mergulham nas suas horas inconstantes de ausências.
Depois, seguiu em silêncio, calmamente, como que pensando. Nesse dia, seguiu, conduzindo em si a lentidão dos seus dias. Numa mão, a inseparável bengala; na outra, o apoio das paredes do beco. Seguindo, "quebrou" o braço esquerdo e desceu pela Rua da Boa Vista. Na calçadinha do Chafariz, deu sua última paradinha pra descansar. Depois, seguiu pra sua tapera, que ficava lá na Rua da Baixinha, (também conhecida pelo nome de Rabo da Gata), na encosta da bela e exótica Lagoa do Paó.
Num certo dia, súbito, alguém percebeu que Pimentinha havia deixado de andar por ali. A notícia logo correu pela praça central. Foi aí que tomamos conhecimento de que sua voz havia se calado para o mundo e para nós. Pimentinha havia se desencarnado! Despencou um silêncio tão danado na gente, uma ausência tão profunda, tão medonha (indescritível), como se um pedaço de pão, uma migalha, uma esmola, dez moedas, um caminhão de dinheiro, ainda fosse pouco para pagar a nossa vontade de trazê-la de volta, só pra vê-la passar por ali outra vez.
Saulo Mendonça é escritor, poeta e haikaista