A irmã de Elle continua falando, enquanto segura sua mão. — Um dia você me intrigou. Estávamos comprando material de expediente para o se...

A marca de um cheiro

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A irmã de Elle continua falando, enquanto segura sua mão.

— Um dia você me intrigou. Estávamos comprando material de expediente para o seu escritório de casa. Quando reparei, você estava cheirando uma borracha como se fosse uma flor. Lembra? Perguntei o que estava fazendo. Em vez de responder, você me fez uma pergunta. Aliás, a de sempre: “Não gosta do cheiro?”. Então eu disse: "Gosto, mas não fico cheirando borracha nas lojas ou em outro lugar. Compramos tudo, inclusive a borracha. Era daquelas que usávamos em nosso tempo de escola , das que se coloca encaixada no lápis grafite. Na saída você me convidou para tomarmos um café, iria contar sobre o cheiro da borracha. E me contou:

“Sabe irmã, adoro o cheiro da borracha desde meu primeiro dia de aula.

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Foi naquele dia que descobri ter encontrado uma aliada, uma amiga para o resto da minha vida. Entendi bem cedo que errar é muito ruim. Porém, demorei um pouco para aceitar que o erro castiga, o acerto premia; o erro entristece, o acerto alegra; o erro decepciona, o acerto engrandece; o erro faz chorar, o acerto faz sorrir; o erro derruba, o acerto levanta; o erro distancia, o acerto atrai; o erro destrói, o acerto constrói. Por isso, tenho tantas marcas do mal feito.

Podemos até aprender com os erros, mas eles são sempre repreendidos. Enfim, melhor tentar acertar e deixar de errar tanto.

Quer saber como conheci a borracha? Estava com pressa de terminar a tarefa para ir brincar no parque. Errei ao responder um questionário. Ao reler o que havia escrito, notei que havia trocado o assunto. O medo se apoderou de mim.

Pensei logo na dor de um cascudo ou de um puxão de orelha da minha mãe quando mostrasse o caderno com um enorme “E”, em uma questão tão boba. Foi quando a professora notou meu desespero e me mostrou a borracha, mandou que eu apagasse o que estava errado e colocasse o certo.

Minha amiga borracha me livraria da punição.

Que maravilha aquela descoberta! Eu podia apagar meu erro. Em casa usava uma gilete, mas ela deixava a marca, quando não rasgava o papel, denunciando meu erro. Resultado? Um baita carão: “Está com a cabeça onde, menina?". A repreensão, claro, vinha sempre acompanhada de uma pequena fisgada dos ágeis dedos de mamãe. Dizia que era para ver se eu acordava, voltava para a mesa de estudo e prestava atenção no que estava fazendo.

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Com a borracha, não. Ela apagava tudo, ninguém notava o erro cometido. Descobri que precisava escrever bem leve para o papel não ficar marcado, assim o trabalho da minha nova amiga saía perfeito. Sem dúvida, ela se transformava numa salvadora quando eu me distraía e errava as palavras. Por isso adoro seu cheiro.

Para meu infortúnio, aprendi também que minha amiga só pode corrigir erros escritos. Para os falados e realizados não há jeito, preciso assumir as consequências. Para a tinta que escrevemos no livro das nossas vidas, não existe borracha.”

— Você é realmente incrível! — disse a irmã de Elle — Até aquela tarde nunca havia prestado atenção nas inúmeras vezes que fui ajudada pela borracha e, muito menos, que ela tem o cheiro bem particular da nossa infância.

Trecho do romance inédito "A Marca de um Cheiro" (em fase de revisão) de Ana Paula Cavalcanti Ramalho, que relata os muitos aromas que acompanham a vida da protagonista. Cheiro da borracha é um deles.


Ana Paula Cavalcanti Ramalho é psicanalista e escritora

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