O leitor ávido por peripécias talvez conclua, equivocadamente, que “Liturgia do fim” tem palavras de mais em um enredo de menos. Mas o fato é que esse é um livro cujo principal protagonista é a linguagem, responsável pela condução de um enredo simples, frugal, mas que ganha em densidade na medida em que o narrador Inácio Boaventura mergulha de ponta-cabeça no seu universo psicológico.

Aqui, convém remontar ao conto “Linha reta e linha curva”, de Machado de Assis, em que o narrador assim descreve a personagem Emília:
Trajava com elegância e simplicidade. Ela tinha essa elegância natural que é outra elegância diversa da elegância dos enfeites, a propósito da qual já tive ocasião de escrever esta máxima: ‘Que há pessoas elegantes e pessoas enfeitadas’.
Também no plano estilístico, na maneira como veste a frase, evitando os enfeites, os adereços, Marília é de uma elegância exemplar. Para tanto, porém — e na esteira de Verlaine —, cumpriu-lhe “torcer o pescoço da eloquência”, condição sem a qual jamais obteria o texto sóbrio, discreto e substantivo de “Liturgia do fim”.
Para que o leitor tenha uma ideia do trabalho artesanal de Marília, cito um exemplo, entre muitos outros, em que os sons se entrelaçam, se fundem, repercutindo todo o lavor de uma ficcionista cônscia do seu ofício de escrever criando, sem fazer concessões ao fácil: “(...) amanhando a chã do ventre, lavorando delírios nas leiras regadas de saliva”. Conforme se vê, quase um trava-língua digno da melhor poesia de vanguarda.

Mas Marília inova. Inova, principalmente, porque escreve bem, virtude desde há muito esquecida ou negligenciada pela maioria quase absoluta dos ficcionistas brasileiros. E por escrever bem, a sua obra não será datada, mero ponto de referência de um período literário, como o foi do Naturalismo o romance “A Carne”, de Júlio Ribeiro, para muitos um livro mais da lavra de um gramático do que de um ficcionista. Em outros termos, Marília põe-se a salvo de modismos, de breviários estéticos, de conteúdos programáticos para, eclética, imprimir ao texto o sinete, a marca de sua individualidade criadora, claro que incorporando o que de melhor existe na literatura de todos os tempos e lugares.
Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta, membro da APL