Somente uma coisa eu sei fazer bem nessa vida: assobiar. Aprendi a assobiar ainda criança, com minha mãe, e saí assobiando vida afora. Eu assobio como quem respira: involuntariamente. Por isto, às vezes assobio até mesmo em lugares talvez não tão adequados.
Na primeira década deste século, morei em um prédio onde havia muitas crianças. Por causa do meu assobio constante, os garotos me apelidaram de o passarinho do 204. Mas nem todo mundo associa um assobio ao canto de um pássaro. O famigerado Ivan Lessa, por exemplo, foi morar em Londres e nunca mais retornou ao Brasil. Em uma de suas raras crônicas interessantes, ele afirma que foi embora do Brasil pra se livrar de um vizinho com quem ele se encontrava, todos os dias, no elevador, sempre assobiando.
E completa: "Nunca vi ninguém assobiar em Londres".
Em Budapeste, há um bairro judeu em que se encontra uma das maiores sinagogas do mundo e um museu em memória das vítimas do holocausto. Depois de passarmos a tarde tentando compreender este passado, minha companheira e eu entramos em um supermercado e, sem notar, comecei a assobiar. Foi então que um guarda saiu do outro extremo da loja e encaminhou-se em nossa direção, apontando para mim e urrando, num idioma cuja fúria traduzia o sentido para o português, que era proibido assobiar ali dentro.
Enquanto eu tentava entender a estupidez, uma senhora que estava próxima a nós, na fila do caixa, prontamente começou a soprar um arremedo de assobio e, também apontando para mim, disse ao guarda, num magiar cujo sentimento de indignação não precisava de tradução, ter sido ela que estava assobiando. O guarda, então, recolheu, num engasgo, o seu autoritarismo.
Esta senhora, que nunca me vira antes, não me conhecia; apenas por me ter ouvido trocar algumas palavras com a minha companheira em uma língua diferente compreendeu que eu, estrangeiro, não saberia como me defender e estava em perigo. Ela, portanto, sentia-se no dever de atuar em minha defesa. Esta senhora húngara, que possivelmente trazia no DNA a memória dos horrores da guerra e também a lembrança dos que arriscaram a vida para salvar outras pessoas, não podia permitir que um inócuo turista, pondo algum fiapo de música em um lugar sem face como é um supermercado, fosse hostilizado e ameaçado.
Embora não corresse nenhum perigo ao intervir em meu favor, ela também nada ganharia intervindo e, portanto, poderia ter ficado indiferente ao meu problema – mas não ficou: procurou proteger-me, assumindo, inclusive, a autoria do meu ato. Não há como não se lembrar, no caso, de ação ética, como a entende Bauman, com outras palavras: a referência única do sujeito ético é a sua consciência: o sujeito ético age de forma ética não pensando em qualquer tipo de recompensa ou para evitar algo que lhe traga prejuízo ou castigo (às vezes age até correndo o risco de prejuízo definitivo); o sujeito ético age de acordo com sua consciência e não consegue ficar em paz se não agir de forma ética.
Saí do supermercado muito comovido e, mesmo estando a um oceano de João Pessoa, sentindo-me o passarinho do 204.
Antonio Morais Carvalho é professor e poeta