Uma das versões da tela “O grito”, de Edvard Munch, foi arrematada em leilão por cento e vinte milhões de dólares. Li que nunca se pagou tanto por um quadro. “O grito” mostra um homenzinho que caminha sobre uma ponte e é surpreendido por algo que o aterroriza. Não se sabe o que ele vê, nem mesmo se está vendo alguma coisa. A força da imagem vem sobretudo desse enigma.
A tela filia-se ao Expressionismo. Suas pinceladas fortes parecem envolver o homem num túnel do qual ele não pode sair. À imobilidade soma-se a sensação de desamparo por fazer uma travessia cujo fim desconhece. O que haverá além da ponte? O grito tenta captar esse mistério. Ou se rebelar contra a dureza da resposta.
A tela propicia várias leituras. Uma delas é a de que a situação do personagem constitui uma alegoria da nossa humana condição. Também atravessamos uma ponte – entre a vida e a morte. Vivemos entre dois extremos enigmáticos, como quem cruza um abismo.
A percepção desse impasse justifica o grito, que se disfarça no murmúrio dos crentes, no berro dos fanáticos, no discurso dos sábios, no gemido dos sensualistas ou no silêncio dos contemplativos. Ele se multiplica em simulacros, porém não se liberta do seu fundo misterioso.
Mas a tela também sugere outra possibilidade: a de que o grito não ocorre. O horror seria tanto, que a voz não sai. Isso me lembra as agônicas imagens de Augusto dos Anjos, em que se lamenta um anseio que não se realiza. Como se o personagem se deparasse com uma revelação tão assustadora, que o deixa mudo. Também no paraibano há um desespero que se busca extravasar num bramido: “Grito e, se grito, é para que meu grito/ seja a revelação deste Infinito / que eu trago encarcerado em minh'alma”.
A poesia de Augusto seria um correspondente verbal da tela de Munch, à qual o nosso poeta se liga pelos traços expressionistas. O que no norueguês é a profusão de círculos e manchas, que fazem o significante ser superpor ao significado, em Augusto é o excesso de figuras sonoras, perífrases conceituais, metáforas e hipérboles sugestivas de um mundo corrompido pelo Vício. O correlato físico dessa falha moral é o corpo doente e inchado, que se traduz em imagens de lepra, elefantíase, tuberculose. Um corpo chagado e sem voz.
Num de suas composições, nosso poeta se refere a uma ponte (Buarque Macedo, em Recife), que ele percorre em direção a uma casa mortuária; ao fazer a travessia, “pensava no Destino e tinha medo”. Não seria o mesmo medo que paralisa o personagem de Much, estanca-lhe a marcha e lhe corta a voz? Tal como no norueguês, em Augusto a voz esbarra “no molambo da língua paralítica”.
Munch pinta o que em Augusto dos Anjos é o horror de se deparar com o indizível, o impasse de não poder verbalizar a agonia. É a impotência da palavra diante do que a transcende, como o brilho de uma “luz que não chega a ser lampejo”. O silêncio que disso resulta assusta mais do que o pior grito.
Chico Viana é doutor em teoria literária, professor e escritor