Que inveja tenho de Eça de Queiroz que podia dizer – e disse – “Sou apenas um pobre homem de Póvoa do Varzim”. E o engraçado é que gosto de cidade grande. Ou, pelo menos, de cidade razoavelmente desenvolvida, que conte com algumas boas livrarias e alguns bons restaurantes. Desses dois prazeres, o dos livros e o da gastronomia, sentiria falta numa cidade onde não pudesse achá-los.
Por isso, costumo dizer que sou essencialmente um homem urbano, pois o isolamento do campo, se me fosse imposto, logo far-me-ia fugir para abastecer-me daqueles agrados civilizados no lugar propício mais próximo. No entanto, paradoxalmente, sinto falta de uma aldeia em minha parca biografia.
É como se me faltasse um pouso, um porto seguro, um refúgio, um lugar para onde voltar nas vicissitudes da existência. Fico pensando naqueles e naquelas que, tendo ganhado o mundo, têm sempre o pensamento voltado para o chão natal, o remoto arraial que guarda, ainda hoje, as infantis lembranças, as que nos marcam e nos acompanham para sempre. Essa a razão de minha admiração, por exemplo, por um Balduíno Lélis, homem do mundo, mas para quem Taperoá toda vida foi o centro do universo, a tal ponto que lá se recolheu para percorrer as derradeiras etapas de seu caminho. Coisa que não quis fazer Ascendino Leite, que, nascido em Conceição (do Piancó), preferiu aguardar o ocaso na orla da Capital, não tendo, ao que se sabe, cultivado com maiores entusiasmos o lugar de nascimento.
Também não tiveram esses entusiasmos telúricos um Augusto dos Anjos, com Cruz do Espírito Santo, e o próprio Lins do Rego, com Pilar. Este último, claro, imortalizou o lugarejo natal em suas obras do Ciclo da Cana-de-Açúcar, mas não demostrou nem de longe a vibração aldeã de Balduíno. Já o reservado José Américo cultuou com mais ardor sua Areia aristocrática, frequentando-a sempre que tinha oportunidade, nem que fosse para ficar recolhido na fazenda de algum parente, usufruindo a temperatura civilizada daquelas alturas e o cheiro inesquecível das casas-de-farinha sobreviventes. Por sua vez, Celso Furtado parece não ter dado muito cartaz à Pombal de origem. Não se tem notícia, nem mesmo nos seus “Diários Intermitentes”, de maiores saudades pombalenses e paraibanas. Foi, sem dúvida, um homem de poucos derramamentos emotivos, devendo, imagino, ter razões para isso, nem que sejam as do temperamento, do qual não se pode fugir.
Tal como a Pilar de Zé Lins, a Itabira do Mato Dentro de Carlos Drummond de Andrade foi sacralizada na obra do poeta, mas não no cotidiano de seus dias. Sabendo da degradação e da descaracterização de sua cidade natal, não desejou mais o bardo retornar às montanhas de Minas, onde o famoso Pico do Cauê, todo de ferro e referência geográfica itabirana, foi totalmente a baixo pela sanha mineradora da Companhia Vale do Rio Doce. Desse modo, não havendo mais a paisagem de sua infância, preferiu o poeta pendurar sua Itabira antiga na parede, como uma simples e dolorosa fotografia. E por falar em mineiros, como esquecer o apego de Juscelino a Diamantina e o de Tancredo a São João del-Rei?
E o gaúcho Getúlio? Poderia, em 1945, deposto e sem poder, ter ido para outro lugar que não fosse a São Borja do seu começo? Teria sido para lá que ele certamente voltaria em 1955, não tivesse sido obrigado pelas circunstâncias a antecipar a partida, saindo voluntariamente da vida para entrar na História.
Ainda há pouco, lendo um artigo de Alberto da Costa e Silva sobre Miguel Torga, o imenso escritor português, relembrei como lhe era cara sua aldeiazinha de São Martinho de Anta, ao norte de Portugal, atualmente com apenas 910 habitantes, vejam só. De tão presente em seus livros, o ínfimo lugarejo está indissociavelmente ligado ao nome do escritor, assim como Coimbra, onde viveu sua vida adulta. A propósito, como são pitorescos e belos os nomes das aldeias e vilas de Portugal, principalmente as mais antigas: Póvoa do Varzim, São Martinho de Anta, Idanha-a-Velha, São Pedro de Moel, São Felizes dos Galegos e por aí vai... O Brasil não guardou essa tradição. Pelo contrário. Vem até hoje, pensando equivocadamente que é progresso, substituindo o bonito pelo feio, o histórico pelo modernoso, como fizeram aqui entre nós, por exemplo, trocando-se o bucólico “Água doce” do antigo distrito de Alagoa Grande por um inexplicável “Juarez Távora”, que nos é estranho.
O fato é que as cidadezinhas de nascimento ou de adoção têm exercido irresistível atração nas pessoas, ao longo do tempo. Nascido em Lille, o envelhecido De Gaulle recolheu-se à pequena Colombey-les-Deux-Églises, onde morreu e foi sepultado. Já Mitterrand foi enterrado em Jarnac, modesta comuna de vinte mil habitantes, onde viu a luz pela primeira vez. Nosso Guimarães Rosa nunca perdeu de vista sua singela Cordisburgo, tendo com esta palavra, que literalmente significa “cidade do coração”, iniciado e concluído seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, como se, para ele, nela residisse o começo e o fim de tudo que valesse a pena ser lembrado.
E vejam bem o detalhe: esse chão lendário não pode ser um lugar qualquer de certo porte, já que não haveria nenhuma graça, por exemplo, um Gilberto Freyre a dizer “Sou um pobre homem do Recife”. Nesse sentido, no máximo, ele poderia afirmar que era de seu bairro, Apipucos, porque aí, sim, estaria configurado o caráter aldeão do lugar.
É possível que eu esteja romantizando tudo isso, exatamente por não possuir essa idealizada e mítica aldeiazinha dos começos. Sei que não raro o burgo natal é tacanho, mesquinho, irrespirável. Portanto, cada qual sabe de si e de sua circunstância, os que voltam e os que não voltam às origens. Mas fantasio. E me imagino a dizer, com falsa modéstia, provavelmente, igualzinho a Eça: “Sou apenas um pobre homem de Póvoa de Varzim”. Mesmo sendo tão pouco aos olhos de muitos, para mim, isso seria o máximo.
Francisco Gil Messias é cronista e ex-procurador-geral da UFPB