Os 100 anos de Celso Furtado, lembrados com edição especial do Correio das Artes e anúncio de um conjunto de obras de perfil memorialista e mais páginas e excertos do seu pensamento científico, levaram-me a rever umas poucas linhas grifadas de antigas leituras.
Não precisa lembrar o impacto da dialética de Celso nas cabeças em formação ou já formadas a partir de sua reaparição em 1958, chegado da Inglaterra. O Brasil subia aos saltos com o otimismo operoso das metas de JK enquanto, no mesmo país e ao mesmo tempo,
o Nordeste se acabava miseravelmente com seus índices de desemprego, pobreza e mortalidade infantil.
Isso me afetava na alma e na carne, tanto pelo grotão sombrio de onde procedi quanto, por isso mesmo, pelo inconformismo que as influências das primeiras leituras e do companheirismo haviam me infundido. A infância que me cercara, mesmo eu tendo o que comer, incitava-me a partir, dividir. O bocado inchava na boca rapinado pelo olho pidão dos filhos de Dinda. A comida, assim cobiçada, caía mais na consciência do que no estômago. E vim para a aculturação com esse estrume de origem. Não passei fome, mas – o que foi pior – transfundi-me do inconformismo que faltava à consciência dos próprios famintos.
Quando Celso Furtado surgiu aportando um novo descobrimento, dessa vez armado de planos e projetos com exatidão de ciência, fiquei num pé e noutro entre o que prometia o “desenvolvimento” e as favas contadas espalhadas pelo socialismo stalinista. Eu não sabia ler Marx nem Engels mas a “exatidão” da prática política soviética viera consolidar minhas esperanças com a leitura da Viagem de Graciliano Ramos. A justeza estilística do alagoano, a exatidão do testemunho político, cultural e artístico pesavam de tal modo na minha convicção que me deixavam a meio caminho da certeza divisada pelo gênio de Celso. Se bem que o ISEB de Roland Corbisier já houvesse andado precursoramente pelos nossos auditórios. O desenvolvimento passava de crescimento natural a crescimento estruturado, estudado e aplicado para corrigir distorções econômicas e, acima de tudo, sociais.
Mexeu com muitas cabeças e com a formação de quadros e culturas. Vivi o complexo de não ser técnico, disperso entre Casimiro de Abreu e o ganha pão de um jornalismo pouco objetivo.
Mas acreditei na política de incentivos, mesmo que o investimento, privilegiando a industrialização ou o urbanismo, terminasse fechando as portas do produtor e trabalhador rurais. Contam-se nos dedos as casas abertas com fumos de habitadas. Hoje, o Celso Furtado que se ombreia com os universais das ciências sociais me faz voltar a Casimiro, a Graciliano, por mais que Celso se transferisse para os jovens economistas que o homenageavam na Unicam, há 23 anos, apelando para “o uso corajoso da imaginação e pouco peso do passado.”
Levantou as mãos de apelo, como fez em 1959, desafiando Juscelino, e chamou os jovens que devem estar no comando de hoje a “inventar um modelo novo para o Brasil (...) Criar uma sociedade mais humana, um maior compromisso com os destituídos, com os pobres. E principalmente com as mulheres, que ainda são excluídas na sociedade. E com as crianças”. Um começar de novo.
Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL