Vou contar umas histórias sobre um amigo meu. Ele é bem desastrado, no sentido mais literal da palavra. É uma marca registrada dessa figura, que considero um cara legal. Ele já foi capaz de jogar o telefone celular pela janela do carro enquanto fazia uma ligação e tentava, ao mesmo tempo, ao volante, dobrar uma esquina (à época ainda não era infração de trânsito). E fez a proeza de arremessar para o alto uma faca de cortar carne, daquelas bem grandinhas, enquanto lavava a louça. De olhos vidrados, acompanhou a trajetória de subida e descida da arma branca com a ponta para baixo que, por sorte, não o atingiu. Passou raspando, foi por pouco que o pé direito não ganhou uma nova cicatriz.
Ainda garoto, ele foi a nocaute quando um coleguinha o confundiu com alvo. Uma pedra arremessada quase encerra sua trajetória. Foi à lona, no caso, à terra, mas escapou após um tempo desacordado. Ele também já fraturou um dente com uma casca de pão francês.
E o que dizer da sua vida de atleta? Desde pequeno uma coleção de cortes nos pés, seja causado por pedra, latas de cerveja (que depois se tornaram amigas) ou osso (ai que dor). Tudo isso em uma carreira futebolística que não decolava. O que subia mesmo eram os chamboques dos dedos. As topadas eram corriqueiras, os roxos das pancadas com outros corpos, humanos ou não, eram comuns. Mas não atrapalhavam o desempenho em campo. Recuperação rápida e bola pra frente. Um pouco de sangue e carne perdidos em nome da glória em campo, seja na grama, terra, areia e até pedras, cimento ou paralelepípedos. O importante é competir.
Já na fase adulta é preciso anexar ao prontuário médico do desastrado jogador uma fratura do dedo polegar esquerdo em um último esforço para chutar a bola e fazer o gol. O sacrifício valeu a pena. Um tento marcado e uma mão engessada por 15 dias. Detalhe: o rapaz em questão é canhoto e isso o deixou de molho do trabalho por duas semanas.
Em certa fase da vida, na rotina da labuta diária em uma empresa que já nem existe mais, o meu amigo conseguiu rasgar duas camisas e uma calça jeans. Se ele não dava a alma pelo trabalho, deixava parte do corpo, ou pelo menos da roupa durante a jornada. Trincos de portas, especialmente em formato de "L", gostavam dele. Tanto que queriam lhe agarrar sempre que passava. Bom, ficavam com parte das vestes e deixavam-lhe de presente alguns arranhões pelo corpo.
E as quinas? Ah! Um amor desde a infância. Estas estiveram presentes ao longo de sua vida, particularmente, diria que no seu caminho. De móveis, paredes e portas, as quinas sempre lhe foram muito próximas. Era comum (e ainda o é) que estas bloqueassem sua passagem, estreitassem corredores e acessos. No caso, joelhos, cotovelos, cabeça, pés, doavam-se. Pedaços de si ficavam espalhados pela casa. E ele tem uma preferência especial pelas quinas de cama. A interação entre madeira e canela é tamanha que permanece vários minutos em silêncio, extasiado, após a colisão.
Acidentes de trânsito? Ele teve a capacidade de colidir três vezes de ré. Uma ele detonou a traseira do carro em outro veículo que estava estacionado. Em outra ocasião atingiu um bloco de cimento junto a uma calçada. E por fim, ainda bateu num pilar de aço no estacionamento de um shopping. A boa notícia é que foram acidentes com danos leves e sem vítimas, exceto aos carros. Melhor mudar de assunto.
Outro capítulo especial da vida desse meu amigo é com relação ao corriqueiro ato de se barbear. Após certa resistência, ele até aderiu ao barbeador elétrico. É que o manuseio das lâminas descartáveis representava uma ameaça à sua vida.
O desajeitado, por mais que se esforce, manuseia o equipamento com imperícia. E a primeira faz tcham, a segunda faz tchum e tcham-tcham-tcham! Um risquinho na pele, o sangue que escorre e ainda tem o ardido da mistura com água, espuma e creme. A cada barba feita, uma jura de sangue: a lâmina entra com o corte, ele com um pedaço de si. E no lugar de um rostinho com pele lisa de bebê, uma versão de Papai Noel distorcido e fora de época por causa das bolotas de algodão que passam a lhe enfeitar a face até conseguir estancar o talho.
Até cotovelada involuntária na hora do... Ops, é melhor parar por aqui. Depois conto mais histórias sobre o meu amigo. Por enquanto, só posso dizer que ele vive bem e goza de saúde.
Clóvis Roberto é jornalista e cronista