Há muitos domingos, por um movimento da terra ou por obra de algum anjo distraído, ele apareceu para mim. Veio vestido de formalismo, barba feita, intenso olhar azul. Perscrutou minha vida, sondou meus sentimentos, ouviu curioso minhas histórias.
Pegou-me sem armas, infeliz em minhas gargalhadas, cercada de uma casa fria, onde havia um som constante de saudade.
Entrou sem pedir licença e insinuou a possibilidade de paixão. Ri das suas promessas, várias vezes empurrei seu corpo como se empurram cadeiras e guarda-roupas, recusei presentes, ignorei telefonemas, pedidos.
No entanto, o acaso nos forçou a ser companheiros de viagem. Seguimos por lugares que eu não conhecia e ele atencioso, ia me ciceroniando para mostrar uma terra, que mesmo árida e causticada pelo tempo, ainda assim era bela.
Talvez fosse a proximidade produzida pela viagem, talvez fosse o poder de sedução contido no olhar, ou algum mistério que eu não conseguia entender. Enfim, fui ficando cada vez mais cativa, redescobrindo magias há muito esquecidas, me sentindo protegida, guardada como nunca mais pensara ser.
Por puro capricho do destino, sina, sabe-se lá, nossas vidas foram cruzadas. O tempo passava e nós íamos traçando o esboço de uma relação. Os traços eram difusos, às vezes amargos, às vezes transbordando de felicidade, mas sempre inseguros, marginais. Era isso. Nossas vidas inesperadamente misturadas, nossas pequenas intimidades sendo desvendadas, nossas escovas de dentes entrelaçadas. Foi um tempo quase perfeito.
Algum dia, em abril, eu o percebi mudado. A voz era a mesma, o riso era o de sempre, mas havia alguma coisa diferente. Talvez fosse o perfume que se modificara, ou o olhar que dançava na minha frente. Eu o sentia desatento e desligado. Faltava alguma coisa. Ainda assim, conservava a delicadeza.
Intuo que foi através do desentrelace que nossas mãos souberam, antes de nós, que a paixão havia terminado.
Em minhas noites insones, comecei a procurar os indícios e os descobri naqueles beijos que já não existiam, naquele amor feito às pressas, nos olhares que antes moravam nos meus e que agora se desviavam para as sombras desenhadas no teto, para as manchas pingadas no chão.
Acabou-se em algum momento de abril a poesia que acelerava meu sangue e a perturbação que fazia meu corpo querer o dele. Inexplicável a paixão, inexplicáveis os motivos. Restou-me o que resgatei da memória, qualquer coisa que me alimentou naqueles dias sozinha, sobretudo à noite, aos sábados.
Voltei a roer as unhas, tomei copos de vinho, sentei-me na rede à noite e contei estrelas. Fiquei como antes, talvez um pouco mais infeliz, talvez um pouco mais descrente da paixão.
No entanto, outro dia na esquina, um vento forte fez redemoinhos no ar. De dentro dele surgiu outro moço, com riso adolescente, vestido com uma bermuda de flores prometendo me levar para o outro lado do Atlântico. Ri muito e quis acreditar. Olhei bem fundo em seus olhos e desatarraxei meu coração do lugar. Ele estendeu a mão e no meio daquele vento, toquei seu corpo e seu rosto. Devagar, quase em ritmo de dança comecei com ele a desenhar outra história, passo a passo, ponto a ponto.
Se fiquei com medo? Não.
Acabei descobrindo que a paixão termina e recomeça a qualquer minuto, num girar do vento, num acender de velas, num despretensioso abraço.
Estranhamente e sem avisos, sobretudo à noite, aos domingos.
Cristina Lugão Porcaro é bacharela em artes plásticas, psico-pedagoga e escritora