Em uma das suas palestras, Ariano Suassuna, em tom de chiste, disse que a Grécia não inventou a tragédia. No máximo, continuou ele, a Grécia inventou a tragédia grega. Claro que um homem com a erudição de Ariano, que foi professor de estética, disse isto para fazer uma das tantas provocações, o que era peculiar nas suas conversas. De minha parte, prefiro afirmar que foi uma blague, porque se ele tiver dito a sério, é um caso único de alguém estar certo e errado, ao mesmo tempo.
Ariano está certo porque a Grécia, sem sombra de dúvida, inventou a tragédia grega. Ele está errado, porque a tragédia, da maneira como se desenvolvia em Atenas, no Teatro de Dionisos, no pé da Acrópole, só poderia ser criada num mundo livre, em que a crítica aos poderosos fosse tolerada.
Não me ocorre que, entre o século V e IV a. C., houvesse, ao menos no ocidente, outra civilização que cultivasse, como modo de vida, a democracia. Digo modo de vida e não regime político, porque, para o ateniense desse período, a política era toda a ação do cidadão voltada para o bem comum; cidadão que tinha direito a voz e voto na ágora, a assembleia pública, por ser filho legítimo de pais atenienses. Não havia, portanto, uma diferença entre a vida do homem e a sua atuação na comunidade, o polites, o habitante da pólis, a cidade que viu nascer a força das tribos, ao se reunirem como população para fazer o poder circular em volta de todos, nunca nas mãos de um só. Aí se encontra a origem da política.
Pois bem, a tragédia só pode ser grega, pois só na Grécia ateniense e democrática é que ela poderia ser encenada, mostrando as falhas dos poderosos e dos seus desejos escusos de mando arbitrário sobre as demais pessoas. É da Oresteia de Ésquilo que surge, por exemplo, o Estado moderno, cuja base é o direito assegurado a um julgamento justo a todo aquele acusado de um crime.
Daí decorrem a transformação da vingança pessoal, em punição aplicada pelo Estado, no caso de crimes de morte, por exemplo, e o direito à dúvida razoável sobre a culpabilidade do réu, que sempre reverte em seu favor – in dubio pro reo.
Não esqueçamos o voto de Palas Atena, desempatando o julgamento de Orestes e o inocentando, passando à posteridade como Voto de Minerva, numa referência à deusa romana correlata àquela grega. As bases do Estado moderno e democrático encontram-se, portanto, na Oresteia de Ésquilo, trilogia formada pelas peças Agamêmnon, Coéforas e Eumênides, tragédias que podemos chamar civilizadoras.
Como uma arte de igual teor poderia grassar em território que não fosse regido por leis igualando seus cidadãos? Nunca poderia acontecer, principalmente com a frequência com que ocorreu na Grécia, após o estabelecimento de um concurso anual de tragédias, sendo apresentadas, no decorrer de um século, cerca de 1200 tragédias, das quais sobreviveram 32.
Essa introdução foi necessária para que pudéssemos conhecer o que significa uma tragédia, peça literária que retoma uma tradição mítica, a partir da fala do Coro e, sobretudo, do Corifeu, o chefe do Coro, versado na religiosidade, fazendo o contraponto com as ações que se encenam no palco. A tradição mítica, no entanto, é, muitas vezes, uma alegoria à situação que se pode encontrar numa cidade grega, no momento de sua encenação.
O Estado beligerante, por exemplo, enviando jovens para morrer na guerra e, muitas vezes, provocando, além da dor, a escassez de recursos, poderia ser evitado com a paz e com as leis constituídas, que atingem todos, trazendo prosperidade. Esta é a lição das Eumênides. Antes, eram Erínias, as Fúrias infernais, divindades perseguidoras de todos os que cometeram o crime de derramamento de sangue parental; agora, transformadas em Eumênides, literalmente “as de força benfazeja”, pois o julgamento de Orestes por cidadãos atenienses, esvaziou a vingança dessas divindades, legando ao Estado a punição devida ao criminoso. É uma mudança significativa: um crime de morte de parentes deixa de ser algo privado que deva ser punido pelas divindades, tornando-se assunto público, porque atinge a toda a sociedade.
Contrariamente ao que muita gente pensa, contudo, a tragédia não exige, necessariamente, mortes. Ifigênia em Áulis, de Eurípides, é uma tragédia e não há uma morte sequer. Nem por isso ela é menos trágica do que a sangrenta Antígona, de Sófocles, ou a terrível e infanticida Medeia, do próprio Eurípides. Para ser tragédia o que se exige é haver sofrimento; que alguém passe da fortuna para o infortúnio, não porque é mau por essência, o que resultaria numa punição catártica; como também não há tragédia, quando o sofredor é alguém essencialmente bom. Se isto ocorresse, diz Aristóteles, só causaria revolta no público pela injustiça cometida.
A tragédia se dá por um erro transcendental, que leva o herói a uma queda; erro que contamina todos que, de uma forma ou de outra, não condenaram a ação, às vezes involuntária, do herói que cometeu o equívoco. Édipo nunca quis matar o pai. O homem que ele matou não era, para ele, seu pai, mas um estranho que o agrediu e, prepotentemente, quis tomar-lhe a primazia na passagem da estrada. Édipo se defendeu. E não se pode dizer que ele se aproveitou da situação para matar um velho, pois o velho, que ele não sabia ser seu pai, estava acompanhado de seus servos, e não sozinho, inerme.
A tragédia grega exige, portanto, que alguém fique para sofrer, por um erro que maculou a todos. É a força da Ananke, a terrível Necessidade, que, do mundo grego ganha o orbe e afeta a todos, uma hora ou outra. A necessidade é um estreitamento – a raiz da palavra tem o sentido de “tomar no braço” – que não nos concede alternativa, senão passar por ela.
Eurípedes na magistral peça Hécuba cria uma das tragédias mais fortes que o mundo grego conheceu. A rainha da poderosa e rica Troia, cidade que comandava o Helesponto e o caminho para o Bósforo, concedendo o acesso para o Mar Negro, Hécuba, a mãe de prole numerosa, vê os filhos, um a um serem mortos, o marido ser degolado diante do altar doméstico, a filha Cassandra ser estuprada e levada para servir de escrava a Agamêmnon; vê a nora Andrômaca ter o filho Astiânax, seu neto, jogado do alto das muralhas, pelas mãos de Pirro, filho de Aquiles, para que a criança não se transformasse em outro Heitor; vê a sua cidade ser saqueada, incendiada e removida de suas bases. Se tudo isso não bastasse, Hécuba está destinada a servir a casa de Odisseus, o astucioso inimigo, responsável pela queda da cidade. A quem tanto tivera, tudo se negara. A quem provara uma vida larga, o estreitamento exigido por Ananke, a Necessidade.
Eis aí a razão por que a tragédia é ensinamento moral: ninguém se conhece sem que passe pela necessidade, sem que saia de si, para poder encontrar-se consigo mesmo na adversidade transformadora. Que bela tragédia não seria Aquiles no Hades! O guerreiro prepotente, no sentido real do termo, de que “pode muito”, não o sentido que lhe emprestam atualmente, o guerreiro que se orgulha de sua areté, o único que ousa enfrentar abertamente Agamêmnon, sem qualquer medo ou sem qualquer respeito à sua posição de chefe dos chefes, num confronto entre o melhor dos heróis e o herói de maior poder de mando.
No Hades, no entanto, Aquiles lamenta-se de ali estar, embora reine sobre as almas, como lhe diz Odisseus. Ele, contudo, desejaria estar vivo, mesmo que fosse como um simples servo, mas vivo. O Pelida escolhera o seu destino de morrer jovem e com um nome imortalizado, quando não se conhecia. Quando se conhece, já está morto, não há como mudar. Mas sua alma fala por si e da lição que aprendera. A Necessidade não facilita, mas ensina.
É o que aprendem as infelizes mulheres troianas do Coro de Hécuba. Caminhando para o exílio, onde haverão de servir ao inimigo, agora seus senhores, matadores de seus maridos, de seus filhos e espoliadores de seus bens, sendo o maior deles a liberdade, as mulheres troianas expressam a dor profunda da lição mais difícil, na fala final do coro: a Necessidade é inflexível.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL