De como o magro é continuação do gordo
A Stan Laurel e Oliver Hardy
o magro
no gordo existe
como uma roupa
existe no cabide.
o magro
se ajusta ao gordo
como uma roupa
se ajusta ao corpo.
o magro
existe no gordo
como em ambos
existe o chapéu coco.
do gordo é o magro
continuação intensa:
um ponto dentro
de uma circunferência.
diante de um filme de carlitos
sentava os olhos
e logo os dividia:
chorava com o direito
e com o esquerdo sorria.
os dois jamais sorriam
ou choravam,
(sempre dividiam,
eram sempre estrábicos),
um era triste
o outro palhaço.
a tristeza entre o avô e o copo d’água
o avô conduz a dentadura
(sorriso portátil)
no bolso do paletó
e ao sorrir a boca murcha
não há um sorriso só
pois o outro se oculta
no bolso do paletó.
o avô conduz a dentadura
(sorriso portátil)
e a introduz no copo d’água:
há uma alegria na boca
e uma alegria afogada
mas uma certa tristeza
entre o avô e o copo d’água.
os retratos dos avós
as gravatas enforcam
as palavras dos avós
e se mais tento o diálogo
mais se apertam os nós
dos avós que se enforcam
de cabeça para baixo
presos aos seus silêncios
cientes dos seus recatos
de que não podem falar
sobre o que foi viajado
e da distância que há
entre o neto e seus retratos
camões/lampião
A Gilberto Mendonça Teles e Temístocles Linhares
camões ao habitar-se
no olho cego
sentia-se íntimo,
mais interno,
que o habitar-se
no olho aberto.
lampião ao habitar-se
nos dois olhos
a eles dividia:
o olho aberto matava
e o outro se arrependia.
camões ao habitar-se
no olho cego
polia as palavras
e usava-as absorto
como se apalpasse
e possuísse o próprio corpo.
lampião ao habitar-se
no olho cego
chorava os mortos
do seu interno,
mas o olho aberto
era casto
e via no matar
um gesto beato.
camões ao habitar-se
no olho aberto
via-se todo ao inverso
(pelo lado de fora)
mas rápido se devolvia
e fechava o olho aberto
pra ser total a miopia.
lampião ao habitar-se
no olho murcho
via o olho aberto
estrábico e rústico
e compreendia
o olho aberto
mais murcho
que o olho cego.
camões ao habitar-se
no olho murcho
via o mundo claro
dentro do escuro
e o olho aberto
era inútil
ao habitar-se
no olho murcho.
lampião
atrás dos óculos
sentia-se acrescido, somado,
e era mais lampião
naqueles óculos de aro.
os óculos
lhe eram binóculos
íntimos sobre a miopia
e quando os óculos tirava
lampião se decrescia:
o olho cego somava
e o aberto diminuía.
camões molhava a pena
como se no tinteiro
molhasse o olho cego
e tateando, cuidadoso,
saía do seu interno.
(no tinteiro as palavras
em forma líquida
juntam-se uma a uma
à retina, à pupila).
camões
escrevia com o olho cego
por senti-lo mais seu
do que o olho aberto
e por poder o olho cego
infiltrar-se, ir mais dentro
e externar o seu inverso.
Nota
Os poemas desta publicação fazem parte do livro “A ilha na ostra“, de autoria do poeta Sérgio de Castro Pinto, editado há 50 anos, em 1970, pelo Grupo Sanhauhá, com capa ilustrada pelo artista plástico Flávio Tavares.
Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta