O problema da indisciplina na escola estava sério, por isso o diretor convocou uma reunião dos professores com os pais dos alunos. Ultimamente houvera episódios graves – um deles envolvendo o professor Astrogildo (por sinal, um dos mais detestados da escola). Ele se dirigira a uma aluna e, diante da turma, dissera que ela não tinha futuro; era bagunceira demais para esperar coisa boa da vida. A menina saiu da classe chorando e foi para casa mais cedo.
O pai dela agora estava ali, na primeira fila, encarando o professor com um ar bem pouco amigável.
O diretor começou:
— Bem senhores, há muitas coisas a discutir. Como sabem, a bagunça dos alunos chegou a um nível insuportável. Isso tem levado alguns professores a atitudes extremas... Vamos começar pelo caso de Beatriz (era esse o nome da garota).
Astrogildo se sentiu intimado a começar. Com a calma que lhe era própria, explicou que a aluna estava muito rebelde naquele dia. Ria e incomodava as colegas. E o pior: ficava o tempo todo olhando o celular, embora...
Sem esperar que ele terminasse, o pai de Beatriz tomou a palavra e desabafou:
– Quando minha filha chegou em casa ainda com lágrimas nos olhos, não suportei o seu ar de humilhação. Ela tinha sido vítima de bullying (não havia outro nome) praticado pelo próprio professor!
Fez uma breve pausa, olhando as pessoas em volta:
– Vou dizer uma coisa que não pretendia confessar a ninguém. Naquele momento, pensei em matar o responsável pela agressão. Pensei, não. Decidi. Ia tirar a vida dele e me suicidar. Cheguei a ir à escola com uma faca embaixo da camisa e ficar de tocaia esperando que ele saísse.
A sala o contemplava estarrecida. Astrogildo, entre sério e intrigado, acompanhava o desenrolar da história. Leopoldo continuou:
– Fiquei escondido num arbusto até que vi ele se aproximar. Apertei o cabo da faca, mas no momento em que ele passou rente a mim mudei de ideia. Vi que aquilo não era o melhor a fazer. Guardei a arma no bolso e voltei para casa.
A assembleia olhava-o com um ar de recriminação. Parecia que estavam diante de um ser desprezível. Astrogildo aproveitou a oportunidade para contra-atacar:
– Vejam vocês! O pai da garota que eu tentei corrigir vem a este recinto e se revela um potencial facínora. Eu agora podia estar morto.
– Eu também! – lembrou o pai de Beatriz, ainda constrangido com a reação da plateia. O professor voltou à carga:
– Esse homem confessa que tentou me matar e guarda a arma em casa. Enquanto essa faca não for apreendida, não vou conseguir dormir. Exijo que se comunique imediatamente o caso à polícia.
Leopoldo voltou a se sentar, em meio ao burburinho dos outros pais e professores. Uma mãe que estava junto dele resolveu, prudentemente, se sentar umas duas filas atrás. Não sabia o que era “potencial facínora”, mas sentiu que não se podia facilitar com gente desse tipo.
Vendo que a reunião precisava de um rumo, do contrário não se decidiria coisa alguma, o diretor resolveu falar.
– Senhores, calma.
– Como manter a calma? – protestou Astrogildo. – Ele confessou que ia me matar! Pode muito bem vir a fazer isso. Não se deve subestimar as ameaças de uma pessoa desequilibrada.
– Professor Astrogildo – continuou o diretor –, vamos avaliar racionalmente os fatos. Leopoldo teve um impulso provocado pela humilhação que o senhor fez a filha dele passar, mas não foi além disso. Na hora h, cedeu ao bom-senso. Ficou tão próximo do senhor, era fácil desferir o golpe – mas retrocedeu por um apelo da consciência. Que potencial criminoso agiria assim?
A plateia ficara em silêncio. Parecia refletir sobre as palavras do diretor, que calmamente continuou sua fala:
– Impulso todos temos. Ter moral não significa ser destituído de impulsos, mas resistir a eles. Quem já não pensou em bater, ferir ou mesmo matar alguém? Os que cedem a esse tipo de apelo se curvam à besta que têm dentro de si. Os que não cedem, e suplantam o instinto, demonstram respeito pelo ser humano.
– Balela! – protestou Astrogildo. – Ele ia me matar. E também se matar para não ter que enfrentar a Justiça.
– Não seria um preço muito alto, professor? Desde quando alguém troca alguns anos de cadeia pela própria vida?
Depois dessas palavras, o ritmo da reunião ficou menos tenso. O diretor sugeriu que se mudasse de assunto, pois havia outros casos de indisciplina a comentar.
Leopoldo se levantou em silêncio e foi embora. Chegando em casa, abraçou a filha e pediu que ela se comportasse melhor na escola. Era um dever. Além disso, não devia dar pretexto a que pessoas como Astrogildo manifestassem sua arrogância.
– Vá por mim, filha. Ouça seu pai, que tem bom-senso e respeito pelo ser humano... Acabei de ouvir isso, entende? Eu podia estar agora humilhado, respondendo a um interrogatório.
– De que é que o senhor está falando, pai?
– Nada não. Vá fazer as lições de amanhã.
Chico Viana é doutor em teoria literária, professor e escritor