Decerto o inquieto e producente Arthur Kösztler viveu o conceito que emulou e a que denominou “the oceanic feeling” (o oceano de sentimentos). Köstler (como grafava sua mãe vienense) era judeu, tendo incorporado toda a mística hebraica, e experienciado estados alterados de consciência seja no uso de drogas como LSD, seja pelo que relata em seu trabalho autobiográfico "The Invisible Writing", onde a mística o alcançou no cárcere. Esses homens, dados à vivência intensa e à experimentação, fazendo de suas mentes e corpos cobaias do sentir e do pensar, são forte influência para os artistas, sobretudo quando publicam com tamanha riqueza de detalhes e arte mesmo no escrever.
Arthur, com seu conceito de ‘oceano de sentimentos’, é influência indelével no compositor finlandês Einojuhani Rautavaara. Tendo nascido na geração seguinte a de Arthur, Rautavaara é nome que emerge na Escandinávia pós-Sibelius, com criativa força mística de extremada expressão.
Especialmente prolífico, Rautavaara legou-nos uma vasta obra. Em 1969 compôs um breve ciclo de seis Estudos para piano solo, sob o opus 42, no qual há, como em toda sua criação, uma intensa relação entre técnica e seu universo místico. Para adentrar nesse misterioso mundo é mister que busquemos uma concentração, um isolar-se no qual a percepção própria flua. Interpretar nesse sentido é perceber idéias musicais e inteirar-se delas no todo sígnico que é a obra musical. O patrono deste Ambiente de Leitura, o saudoso cronista Carlos Romero, numa de suas colunas, é extremamente feliz ao versar sobre premência em concentração e isolamento, inerentes da vida artística:
“A solidão também é necessária. É por meio dela que o homem conversa consigo mesmo, que se encontra com a sua consciência, que se autoanalisa, que se ilumina [...] A consciência é um espelho que se revela no silêncio da solidão. É recomendável, vez por outra, olhar para ele. Ou será que andamos com medo de nossa própria imagem? Aliás, temos três espelhos na vida: o espelho material, que tanto pode ter uma superfície polida como a de um lago; o espelho que está na visão dos outros – aquele que enxerga os nossos defeitos; e o espelho mental, isto é, a nossa consciência”.
(extrato do texto Solidão... quase sempre)
Se para mergulharmos no nosso eu, para desenvolvermos nossa sensibilidade, para apurarmos nossa percepção do mundo, da vida e das coisas que nos rodeiam, necessário é que nos isolemos, nos miremos fundo; muito mais é requerido ao depararmo-nos com uma obra tão rica e densa como é a de Rautavaara. É aí que o sentido de Arte sobrevém e nos apanha, metalinguisticamente, constrangendo-nos a sermos um pouco artistas, também, ao ouvi-lo: mistério imanente do conviver em Arte.
O opus 42 de Rautavaara é constituído de seis estudos: I. Terssit (Terças); II. Septimit (Sétimas); III. Tritonukset (Trítonos); IV. Kvartit (Quartas); V. Sekunnit (Segundas); VI. Kvintit (Quintas). Pronuncia-se neles muito do pensamento perseguido em obras mais robustas como se o estudo não fosse, meramente, pianístico. Há, tanto o desafio de incorporação de seu linguajar harmônico, sinuoso, com superposições triádicas perfazendo acordes complexos; quanto melodias de vetores intervalares espaçados, cuja força expressiva é peculiar e denota sua voz própria, seu pendor à mística e ao mistério. Aliás, os intervalos entre os sons musicais – base para os constructos escalares, as gamas de notas diatônicas e cromáticas – são tanto estrutura da arquitetura harmônica, como da engenharia linear nas melodias e efeitos de ambientação nos arpejos.
Os filósofos Deleuze e Guattari alertam para as múltiplas interpretações possíveis quanto ao plano organizacional. Sendo este plano definido e rigorosamente obedecido no que diz respeito à forma, com parâmetros musicais e lógica discursiva pré-estabelecidos, a transcendência das fronteiras se impõe nas técnicas e modelos estéticos aos quais o compositor submete sua obra. O intento é, de fato, ir além, valer-se de regras sistêmicas, mas burlá-las se necessário, ou confirmá-las no único propósito de promover o suporte adequado para a expressão final. Tudo, portanto, – materiais e procedimentos técnicos – está a serviço do objetivo consciente de transcendência. A idéia, inaudível e amorfa, se concretiza quando revestida das necessidades humanas de início meio e fim; mas o plano é misterioso e oculto:
“na música, o princípio de organização ou de desenvolvimento não aparece por si mesmo em relação direta com aquilo que se desenvolve ou se organiza: há um princípio composicional transcendente que não é sonoro, que não é "audível" por si mesmo ou para si mesmo. Isto permite todas as interpretações possíveis. As formas e seus desenvolvimentos, os sujeitos e suas formações remetem a um plano que opera como unidade transcendente ou princípio oculto [...] Plano de vida, plano de música, plano de escrita, é igual: um plano que não pode ser dado enquanto tal, que só pode ser inferido, em função das formas que desenvolve e dos sujeitos que forma, pois ele é para essas formas e esses sujeitos”.
(extrato de MIL PLATÔS, Capitalismo e Esquizofrenia,Vol. 4)
Não é inusitado usar sistematicamente os intervalos para passear pela topografia pianística e criar estudos desafiadores – Claude Debussy e, aqui no Brasil, o querido Edino Krieger, são exemplos notáveis –, mas Rautavaara dá o sentido de estudo composicional de seu espírito místico em cada peça deste opus.
O primeiro é concebido em forma ABA – um tema, suas consequências e desenvolvimento, e o retorno variado ao início – e tem um discurso apoteótico com dois gestos interagentes: os acordes em fortíssimo, acentuados, e os arpejos velozes em cinco oitavas ascendentes, realizados duas vezes, abrindo a peça. É como se um portal abrisse-nos os ouvidos e a atenção para o que se decorre em seguida. Toda essa estruturação é elaborada a partir da ligação harmônica de/em terças (por exemplo: Ré-Fá-Lá-Dó-Mi), quer superpostas, quer subsequentes. Dessa atmosfera, emerge uma melodia marcada e misteriosa, envolvida pelo acompanhamento dos arpejos incessantes.
O segundo estudo tem rítmica intrincada, complexa, irregular, seguindo o princípio de melodia acompanhada, mas, tendo no acompanhamento, um interesse amplo, baseado no vetor intervalar de Sétima Maior – apresentando-nos uma sistemática alternativa à harmonia organizada em oitavas, e que já é jargão pianístico. Nisto, Rautavaara concebe uma textura pianística e, a pouco e pouco surgem acordes resultantes que adensam dramaticamente a peça. O andamento é extremamente depressa e se precipita, ao fim, com furor, em direção ao grave, numa nota final única, fatalmente forte e contundente, como quem sabe dos acontecimentos bruscos do viver.
O terceiro estudo é um primor de contraponto feito numa única página. O trítono é chamado na História da Música de diabolus in musica, não só porque remeteria – como reza a crendice em torno da proibição eclesial – a uma sonoridade “diabólica”, mas, sobretudo, porque divide por igual a escala cromática. Novamente, Rautavaara dá um sentido lento e grave que eleva-se pela tessitura do instrumento e esvai-se ao escuro em puro mistério.
O quarto estudo alude à ideia do primeiro e do segundo, com uma nova organização intervalar das chamadas “Quartas Justas”, intervalos considerados perfeitos desde a Idade Média. Consonância que se dilui pela progressão harmônica característica da persona composicional. Há uma ponte em acordes agressivos e fortes, de expressão aguerrida, e retorno ao tema inicial com finalização semelhante ao segundo estudo. Já o quinto estudo é o mais misterioso de todos porque mantém, em forma espelhada, utilizações motívicas entre as mãos e entre as tessituras dos extremos do instrumento. Um fio condutor sob a base intervalar de Segunda Menor, e arabescos mágicos no agudo que transformam-se em assombros com o uso do pedal nos graves.
Por fim, o último estudo, é uma espécie de mini-rondó (que é um gênero no qual uma idéia se apresenta de maneira recorrente e em ciclos), com notas-pedais, sobre as quais as mãos se alternam em frenesi. Vale-se de técnica muito semelhante ao que concebe Heitor Villa-Lobos em diversas obras para piano. O estudo é breve e rápido como um redemoinho de folhas secas que rodopiam e pairam, mas que caem subitamente. Recomendo tanto a gravação da pianista finlandesa Laura Mikkola, disponível com partitura para os que lêem – e por que não para os que ainda não lêem?... – quanto o registro ao vivo da participação do pianista judeu-californiano Kyle Orth no Concurso Internacional de Piano em Helsinque. Que em tempos pandêmicos aprendamos a lidar com a solitude, e ter na Arte um espelho de nossas almas: plano de vida que pela Música podemos conhecer e quiçá mergulhar em sentimentos oceânicos a que ela misteriosamente nos reserve...
Sam Cavalcanti é mestre em música, compositor, crítico e escritor