Uma zoada muda, abafada, distante. Chega mais perto, cresce, até irromper na esquina. Quem estava em casa corre para ver.
O palhaço Perna-de-pau é um homem jovem, animado e falante. Acena para quem está nas calçadas. As pessoas correspondem, fascinadas.
Ao seu lado desfila uma moça que surpreende pela beleza. Tem seios firmes e coxas grossas. Os cabelos longos e dourados atraem olhares. É alta e sorri. Movimenta os braços, brinca com argolas. O palhaço usa um chapéu coco turquesa, calças largas, vermelhas, com listras brancas. Ele dá passos largos e grita fazendo mugangas para a criançada histérica que responde com gracejos. Uma charanga barulhenta e um rabequeiro festivo completam a marcha, que logo desaparece na rua da igreja.
A notícia correu ligeiro. Dona Rosa, que lavava nossas roupas, trouxe os detalhes. Disse que estavam montando no largo da feira e que devia ser bom, porque tinha um monte de diversões. Havia cavalos pampos, um bode e meia dúzia de cães. Ainda tinha globo da morte e a tábua giratória para o número com facas.
Também foi dona Rosa que dias depois, quando veio deixar roupa lavada, trouxe a história do crime que envolveu o palhaço. Estava muito nervosa, as mãos tremendo. Falou com dificuldade:
– Uma tragédia, dona Arminda!!
– O que aconteceu, Rosa? – perguntou nossa mãe. - Se acalme, mulher, senta aqui – disse puxando uma cadeira –, conte logo, pelo amor de Deus... O que foi, e com quem?
– Era Zuca e não Zuza... Ele matou Zuza! Ainda vi o povo chegando pra destruir tudo, botar fogo no circo. Meu Deus!
Quando a lona foi erguida, deu admiração ver a boa aparência externa da cobertura. Havia duas bandeiras azuis alçadas nas torres centrais e bandeirinhas coloridas nos mastros do entorno, além de cordões de lâmpadas amarelas que partiam das torres em direção aos mastros.
Em seu interior, o espaço de cena revelava um palco com ricas cortinas vermelhas e extenso picadeiro atapetado onde aconteciam números diversos, como mágicos, equilibristas e o engolidor de fogo.
O Circo Real era o principal assunto da cidade.
Na noite de estreia o circo estava lotado. Cedo, o público se atropelava para ocupar os melhores lugares nas dezenas de cadeiras e nos poleiros que circundavam o picadeiro. De um lado ficava o globo da morte, do outro um cercado de ferro com alguns banquinhos.
O Espetáculo começou. A moça que desfilava na rua foi a primeira a se apresentar. As luzes se concentraram em seu rosto belo e juvenil, em seus cabelos dourados, suas coxas grossas. Sorrindo, ela dançava se enroscando numa corda, dando muitas voltas em torno de si. Arrancava aplausos, atraía olhares, provocava desejos e suspiros.
Foi na terceira noite de espetáculo que tudo aconteceu.
Zé Pacheco, o dono da Companhia, estava realizado. Era casa cheia. Os artistas queriam aplausos; o público, mais uma boa apresentação. Havia contentamento na expressão dos presentes que voltavam para ver a moça de cabelos dourados, para ver o leão feroz sentando no banquinho, ver a graça do palhaço Padoca, que provocava muitas gargalhadas. O outro palhaço nem tanto, não era bom quanto Padoca, e nem engraçado era. Talvez estivesse ali porque não tinha coisa melhor para contracenar. Mas ele era o Perna de pau, era o equilibrista, o que dava o salto mortal no trapézio.
Até os 16 anos de idade Zé Pacheco, o palhaço Padoca, nunca havia entrado num circo. Trabalhava em Feira de Santana como entregador numa mercearia. Um dia foi deixar uma encomenda para uma senhora no circo Universal. Ficou tão encantado que a mulher o chamou para vender maçãs do amor no espetáculo daquela noite. Gostou, voltou no dia seguinte. Quando o circo foi embora, Zé foi convidado para ir junto; a Companhia precisava de um vendedor de maçãs que não fosse apenas um vendedor de maçãs. A Companhia precisava de Zé! Ele era um tipo engraçado, espontâneo, cheio de trejeitos e habilidades. Botava graça no negócio, gritava, corria, tropeçava fazendo suspense com a bandeja, e conquistava o público, que comprava todas as maçãs só para vê-lo de perto. Mas aquilo não bastava, ele olhava para o picadeiro, se imaginava lá. Sonhou, observou, esboçou um personagem e lhe deu vida. Em pouco tempo começou a fazer parte do picadeiro, como o segundo palhaço.
Assim nasceu Padoca, que foi ganhando experiência, personalidade, admiração. Um estilo próprio, espalhafatoso nas expressões, mas sem quase nada no rosto. Era uma maquiagem simples. E não precisava de muito, sua arte estava no improviso, no brincar com a voz, nas imitações das figuras caricatas que descobria em cada lugar por onde a Companhia passava.
Um dia chegaram em Palmeira dos Índios. Um espetáculo de estreia, casa cheia. Nesse tempo o Universal contava com três bons palhaços, mas Padoca surpreendia. Deles era o que mais divertia o público. No intervalo, enquanto vendia maçãs, um senhor lhe entregou um endereço junto com uma proposta. Pediu para o procurar caso tivesse interesse. Aquele senhor era o dono do circo Real. Quinze dias depois Zé Pacheco, o Padoca, se despedia do Universal numa apresentação derradeira que arrancou risos da plateia e lágrimas daquela família circense com a qual convivera por mais de uma década.
Alguns anos depois Pacheco fez um acordo com aquele senhor, que se sentia cansado e decidiu parar, fixar residência em sua terra de origem. O Real continuou. Na estrada Pacheco aprendeu muitas coisas. Era de tudo um pouco: administrador, apresentador, mágico, ator. E mais do que isso, era Padoca, a alma do circo. E foi na pisada da vida que conheceu alguém, que gostava de viajar como ele, daquela vida cigana. Casou, teve filhos, que se formaram artistas. O Real era sua casa, sua vida, sua história. Naquela temporada em Cuité, Pacheco estava feliz.
Na segunda parte do terceiro espetáculo a loira havia acabado sua apresentação, um número que exigia muito esforço físico. Cansada, agradeceu aos presentes e se retirou do palco. Foi correndo para o traller, que compartilhava com o marido – o palhaço Perna de pau – que naquele momento se apresentava no trapézio. O traller ficava nos fundos das instalações do circo, uma área fechada, mas de cerca precária e muito pouco iluminada.
Ela entrou e bateu a porta atrás de si, que devia travar sozinha. Não travou. Foi para a outra extremidade do ambiente, onde havia um espelho amparado por pequena prateleira para maquiagem. As janelinhas tinham cortinas, uma estava aberta, ela fechou, em seguida arrastou a cortina. Agora podia tirar a roupa, ficar nua diante do espelho. Ah, ela adorava aquilo! Sentou na cama, soltou os cabelos, ergueu-se para tirar o maiô. A loira contemplou-se, sorriu encantada. Num instante, revelou-se no espelho o corpo esguio, de seios firmes, de coxas grossas. Mas foi só por um segundo...
O espelho também revelou a figura de um homem, que a agarrou, abafando-lhe o grito com uma mão áspera, pesada, seca. Puxou-a para cima da cama. Ela relutou inutilmente (o circo estava lotado, os artistas e ajudantes àquela hora se mantinham todos ocupados em suas funções, ou se apresentando ou vendendo doces e salgados na área de entrada... ninguém ia ouvir). Ela reagia... Riscou-lhe a cara com as unhas, segurou a camisa, puxou para um lado, os botões saltaram. Desesperada ela lutava, indefesa ela resistia, exausta se rendia. Era uma luta desigual. Então o homem forçou-a, projetando seu corpo sobre o dela, agora imóvel e abatido. Mas houve um segundo, e ela o mordeu forte, e ele resmungou de dor. Ela gritou de desespero. Alguém ouviu, veio correndo, mas o homem foi rápido, levantou-se, abriu a porta e desapareceu na semiescuridão da noite.
No entanto, a mulher que vendia milho assado, do lado de fora do circo, viu o homem correndo:
– Eu vi, sem quem é. É Zuca!
Havia mais gente com ela:
– Eu também vi. Tava com a camisa rasgada, peito de fora. Foi Zuca! Correu pra lá... - disse apontando para a rua da Lagoa.
O espetáculo prosseguia. Quem não se apresentava correu para o traller da loira. Ela chorava, o corpo envolvido num lençol. Contou o que acontecera. O homem tinha surgido de repente, do nada... ‘’ Acho que não tranquei a porta direito...’’ - contava, soluçando. Os lábios tremiam, as mãos também. Pouco depois chegou o Perna de pau, seu marido. Os olhos estreitos e os dentes cerrados diziam que estava muito transtornado.
Quando o Perna de pau conheceu a loira, sua vida perdeu a paz. A dela também. Ele, pelo ciúme doentio. Tinha medo de um dia acordar e ela dizer que não o queria mais. Sofria só de pensar. Ela também sofria, e o motivo era a vida de clausura, ele suspeitando de tudo, ele com cisma de quem lhe atirava um olhar. E imagine, nunca ninguém tinha tocado num único fio de cabelo da loira.
– E agora, meu Deus? – murmuravam as amigas, inquietas e aflitas.
O espetáculo terminou. Pacheco veio e acalmou o Perna de pau. Sobre o ocorrido, a loira estava bem. Entretanto, se preocupava com uma possível reação do marido. De qualquer modo, Pacheco e ele tinham conversado. No dia seguinte iriam à delegacia. ‘’ - Essas coisas se resolvem na Justiça ‘’ – dissera o dono do circo.
Enfim, a tensão cedeu e o assunto se deu por encerrado. Mas o Perna de pau não pregou o olho. Bebeu a noite inteira. Pela madrugada pegou arma e saiu em direção à rua da Lagoa.
Movido pelo efeito pernicioso do ciúme e encorajado pela garrafa de aguardente, que sozinho tomou, foi decidido a fazer justiça com as próprias mãos.
A rua está esquisita, a lua ainda reflete na água da Lagoa. O Perna de pau está bêbado, trépido, tenso. Alguém caminha em sua direção. Um tipo já velho, cansado, que caminha com dificuldade.
O Perna de pau pergunta:
– Onde mora Zuca?
O velho também tem problema de vista, dificuldade na audição. E responde:
– Zuza mora ali... – Disse apontando a casa.
O palhaço falou uma coisa, o velho entendeu outra.
Zuza era um senhor de idade, religioso, alma boa. Acordava cedo. Ouviu ruídos, passos, alguém se aproximando. Viu uma sombra na porta. Bateram com firmeza, pancadas fortes, ressoantes... Quem seria?
O pobre Zuza se levantou, vestiu-se rápido, veio atender...
A rua acordou com o estampido do tiro mortal, a cidade acordou com a notícia, e a nossa casa com o desespero de Rosa.
Num instante gritos se confundiram com o choro desesperado de parentes e vizinhos. Janelas e portas se abriram, pessoas saíram às calçadas, correram para casa de Zuza.
Alguém bradou num rompante:
– Vamos achar o assassino!
Outro, ofegante, chegou:
– Eu vi ele...O assassino...
E mais outro :
– Eu também vi... Vi a cara dele... é do circo. O Palhaço! Estava armado... Correu pra lá, pra banda do circo!
Em pouco tempo o alvoroço se avolumou, ganhou força, ânimo, e ninguém controlou ninguém. O bando marchou em direção ao circo, armado de pedras, paus, raiva, ira.
O Perna de pau tinha matado um homem, e pior que isso, matara o homem errado, um inocente, dentro de sua casa, a sangue frio. Meu Deus!
A notícia correu, chegou ao circo antes dos revoltosos. Pacheco não tinha muito o que fazer. Eram forasteiros. Foi pra entrada, enfileirou seus homens, formando uma barreira. Sabia que uma desgraça gerava outra desgraça. As mulheres choravam, abraçavam as crianças.
Agora os insurgentes eram dezenas, que pareciam mais, pelos gritos, pelo assombro, pela fúria. Chegaram, desvairados, trazendo no coro um clamor insano:
- Vamos destruir tudo! Queima a lona, queima o circo!
Padoca deu alguns passos à frente e disse, tentando conter os insurgentes:
– O assassino não está aqui! Não temos nada a ver com isso.
Mas no meio da gritaria alguém surgiu com um tição em chamas. Os gritos se repetiram:
– Queima, queima!
E foi nesse instante que, tomado por forte emoção, o desesperado Padoca caiu, de joelhos. A mulher correu para abraçá-lo, os filhos também. Num esforço derradeiro, ele estirou os braços pro alto, e com os olhos cheios de lágrimas, deixou as palavras soarem, quase numa prece:
– Não fomos nós! Deixem a gente ir embora! Pelo amor de Deus, não queimem o circo! Não... não queimem... pelo amor de Deus!!!
E o inesperado aconteceu. A cena dramática e comovente daquela família trouxe consigo um fio de condescendência, qualquer coisa de razão para a multidão alucinada, que aquiesceu, e que pouco a pouco se dispersou deixando deserto o largo da feira. No topo das torres, sobre o lonado, as bandeiras azuis se agitavam ao sabor do vento, indiferentes a tudo o que acontecera.
O circo Real deixou a cidade naquele mesmo dia, só retornando 25 anos depois.
Célio Furtado é artista plástico e cronista