Por volta de 50 a.C. um poeta e filósofo chamado Tito Lucrécio Caro escreveu um famoso texto intitulado De rerum natura – “Da natureza da...

O caçador de livros

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Por volta de 50 a.C. um poeta e filósofo chamado Tito Lucrécio Caro escreveu um famoso texto intitulado De rerum natura – “Da natureza das coisas” em tradução livre. Eram versos latinos belíssimos. Cícero (106 - 43 a.C.) ficou impressionado com a poesia de Lucrécio, realmente algo incomum, um texto perigosamente radical, um poema que reunia um gênio iluminado em filosofia e ciência a uma força poética extraordinária.

Epicuro (341 – 270 a. C.), nasceu na ilha de Santos, no mar Egeu, na Grécia. Ficou famoso num tema específico: a felicidade. Insistia que queria se concentrar em como ser feliz. Num jardim de Atenas, Epicuro construiu toda uma explicação do universo e uma filosofia da vida humana. Era o messias filosófico de Lucrécio.

O livro de Lucrécio, uma tradução em prosa de 2 mil anos de idade totalizando 7.400 versos, não é uma leitura fácil. Está escrito em hexâmetros, com seis acentos internos, em que poetas latinos, como Virgílio e Ovídio, imitando o grego homérico, apresentam sua poesia épica.

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É dividido em seis livros, sem títulos. Constam meditações filosóficas sobre a religião, o prazer e a morte, além de complexas teorias do mundo físico, da evolução das sociedades humanas, dos perigos e das alegrias do sexo e da natureza da doença, com momentos de intensa beleza lírica.

A visão fundamental do poema de Lucrécio é que em tudo que já existiu e tudo que ainda existirá é montado a partir de partículas indestrutíveis de dimensões diminutas, mas inimaginavelmente numerosas. Os gregos denominavam de átomos essas partículas indivisíveis e que não podiam ser divididas em partículas menores. Ele considerava também que a vida e todas as outras formas existentes, inclusive a própria Terra, irão um dia se desintegrar e voltar aos átomos constituintes de que eram compostas e dos quais outras coisas irão se formar na dança perpétua da matéria. O espaço, diz ele, como o tempo, é ilimitado. Não há pontos fixos, não existem começos, meios ou fins, e não há limites. A matéria não fica aglomerada numa massa sólida. O universo consiste, então, de matéria – as partículas primárias e tudo que essas partículas se reúnem para formar – de espaço, intangível e vazio. Nada mais existe.

Esse livro perdido por cerca de 500 anos foi encontrado por Poggio Bracciolini em um mosteiro no sul da Alemanha, em janeiro de 1417. Em uma biblioteca monástica, provavelmente a de Fulda, das muitas por ele visitadas. Ali, ele tirou da estante um longo poema cujo autor pode ter lembrado de ver mencionando em Quintiliano ou na crônica compilada por são Jerônimo: “T. Lucreti Cari de Rerum Natura”.

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Toda essa brilhante narrativa sobre esse caçador de livros durante a Idade Média, foi escrita pelo historiador Stephen Greenblatt, e publicada em 2012 no Brasil, pela Companhia das Letras com o título “A Virada – O Nascimento do Mundo Moderno”, após haver ganho o Prêmio Pulitzer nos Estados Unidos.

Foi por um acaso que o livro de Lucrécio conseguiu chegar à biblioteca de vários mosteiros e um monge em algum do lugar do século IX copiou o poema antes que mofasse ou fosse comido pelas traças e desaparecesse para sempre, até chegar nas mãos do humanista que se denominava Poggius Florentinus, Poggio, o Florentino.

Poggio não gostava de monges, embora reconhecesse em vários deles, homens impressionantes e de grande seriedade moral e erudição. No geral os achava supersticiosos, ignorantes e irremediavelmente preguiçosos. Os mosteiros, na sua opinião, eram lugares em que se largavam as pessoas que não serviam para o mundo. A seus amigos da cúria, contava anedotas sobre a venalidade, a estupidez e o apetite sexual dos monges. Achava que não faziam nada além de cantar como gafanhotos. Porém, tinha muito cuidado quando visitava os monastérios para criar confiança com os monges e facilitar seu trabalho de recuperação de livros raros e antigos. Poggio Bracciolini nasceu na Itália, região da Toscana, em Terranueva, em 1380.

Chegou muito jovem a Florença, na época, cidade escura, apertada, congestionada, sujeita a surtos periódicos de peste bubônica no fim da década de 1390. Tinha dificuldades para apresentar uma longa linhagem de ancestrais ilustres. Para poder se estabelecer no mundo sem ter de se desmentir, precisou comprar um brasão fraudulento de 350 anos de idade. Na sequência de acidentes que levou à recuperação do poema de Lucrécio, a letra de Poggio foi um fator crucial. Para ganhar dinheiro copiava livros e documentos.

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Sua caligrafia e sua competência como copista o fizeram se tornar famoso ainda em vida. Melhorou seu latim, que já era bem avançado e com 22 anos prestou exame diante de uma banca de advogados e notários, dando início à sua vida profissional.

No decorrer de uma longa carreira escreveu livros sobre hipocrisia, avareza, a verdadeira nobreza, o casamento na terceira idade, as vicissitudes da fortuna, as misérias da condição humana e a história de Florença, além de possuir um grande dom com as palavras. No outono de 1403, partiu aos 23 anos de idade para Roma, munido de uma carta de recomendação assinada por Coluccio Salutati, humanista, filósofo, e grande chanceler da República de Florença, amigo de Francesco Petrarca e Giovanni Boccaccio.
 Teve 14 filhos, sendo dois deles mulheres, todos com sua amante Lucia Panneli. Reconheceu seus filhos ilegítimos embora criticado pelas fofocas escandalosas de sua época.
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A um cardeal amigo que o criticou pela irregularidade de sua vida, acrescentou: “E acaso não encontramos todo o dia, e em todas as terras, padres, monges, abades, bispos e dignitários de ordem ainda mais alta que têm famílias de crianças com mulheres casadas, viúvas e até com virgens consagradas ao serviço de Deus”? No dia 19 de janeiro de 1436, já com 56 anos de idade casou-se com Vaggia di Gino Buondelmonti, de 18 anos, pertencente a uma das antigas famílias feudais de Florença.

Poggio foi chanceler de Florença por cinco anos. Conseguiu com seu trabalho e com alguns colegas transformar a caligrafia existente – uma inovação dos escribas do século IX na corte de Carlos Magno – na letra que usavam para copiar manuscritos e escrever cartas. Essas letras serviram de base para o desenvolvimento das fontes que chamamos hoje de Romanas, a exemplo da famosa Times New Roman. Faleceu em Florença no dia 30 de outubro de 1459 aos 79 anos de idade deixando um legado impressionante com suas aventuras à caça de livros antigos no começo do século XV e em seu trabalho diretamente com oito papas.

Para todos que amam os livros, já devem ter tido a oportunidade de haver emprestado algum deles e nunca mais o terem visto de volta. Antigamente os livros eram coisas raras e valiosas. Alguns mosteiros tentavam garantir a estabilidade de suas posses rogando pesadas pragas em seus manuscritos, pois havia muitos humanistas de mãos leves.

Aqui se apresenta uma dessas pragas escrita em um manuscrito medieval encontrado em um mosteiro, para aquele que roube, ou empreste e não mais devolva este livro a seu proprietário:

“Que se transforme em serpente e sua mão o destrua. Que seja vítima de paralisia e se percam seus membros. Que sofra dor à maravilha pedindo mercês em altas vozes e que não haja cessar para sua agonia até que cante dissoluto. Que vermes lhes roam as entranhas como lembrança do verme que não morre e que quando finalmente vá a seu castigo, que as chamas do Inferno o consumam para sempre”.


Sérgio Rolim Mendonça é Engenheiro Sanitarista e Ambiental

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  1. O nosso Caçador de Lagostas estréia no Ambiente de Leitura com uma história mui interessante sobre um Caçador de Livros. E com uma revelação surpreendente: a origem do Times New Roman, o meu padrão preferido de escrita no Word.
    Parabens, Sérgio, pelo excelente texto! Que seja o início de uma longa série. Seja bem-vindo!
    José Mário Espínola

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  2. Muito obrigado, amigo Zé Mário, grande cronista do cotidiano.

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  3. Sérgio
    O Caçador de Lagostas está ampliando sua área de atuação. Muito agradável, para mim, tomar conhecimento das peripécias intelectuais dos antigos.
    Harley P. Martins

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  4. Perfeita a analogia que você estabelece entre a França do século XV e o Brasil pandêmico dos nossos dias. Não fosse um pequeno senão, concordaria integralmente com você. Deixa prá lá.
    De caçada em caçada, não sei onde você vai parar. Começou com as indefesas lagostas, agora espana poeira e traças em busca de documentos e livros antigos. Qual será a próxima?
    Confesso-me apreciador de seus textos e disposto a seguí-lo até onde me seja possível.
    Por coincidência, estava para procurar um contato com você dentro de mais alguns dias. Assumi, perante alguns colegas, o compromisso de escrever a História da Ortopedia e Traumatologia de Paraíba e venho desenvolvendo esse trabalho há uns dois ou três. Reservei um capítulo para traçar o perfil dos personagens de maior relêvo na especialidade, desde o seu início entre nós até a atualidade. E, ninguém de bom senso ousaria contar essa história sem destacar a importância do Dr. Francisco Mendonça Filho, meu professor na Faculdade e vizinho na Praia do Poço, pioneiro absoluto no tratamento das afecções do aparelho locomotor entre nós. Preciso muito de você quando for reunir informações, documentos e fotos. Por enquanto, estou cuidando dos aspectos introdutórios até porque sou grupo de risco tenho de me submeter às limitações que a pandemia impõe. mas dentre em breve irei procurá-lo. Tenho mesmo que correr porque da minha turma de faculdade (éramos 26) só resta meia dúzia. E eu, com 83 anos, sou um deles. Grande abraço.

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