Recebi de uma conterrânea um vídeo com imagens de uma viagem que fez para realizar o seu grande sonho: conhecer o Mar Morto, um mar que nunca foi mar, um morto que nunca morreu.
Esse grande lago, localizado entre Israel, Palestina e Jordânia, tem fascinado o mundo, pelo que representa a sua vasta extensão de beleza.
A sua lama medicinal, quando emerge de suas profundezas, tem a propriedade de purificar o ar que se respira.
Não é o caso, por exemplo, da Lagoa do Paó, em Alagoa Grande, terra onde nasci. Nessa lagoa, no chão raso de suas águas, havia um negrume visguento, uma lama que fazia deslizar a planta dos pés e que curava somente a doença de nossos desejos de liberdade, de ilusão e de entretenimento. Em suas ondas mansas, escuras, meio azuladas — recordo-me — meninos tomavam banho, com a liberdade visivelmente desnudada, misturando-se com o espelho das águas, que refletiam o azul marinho do céu, sobre o qual escreveu o poeta Osório Paes, “Deus fez o mundo com a beleza que ele encerra. Fez bonito o céu formoso e azul de minha terra.”
Os ares de felicidade ficavam ziguezagueando sob o céu azul, profundamente. Juntavam-se a outros céus feericamente internalizados, naqueles que se banhavam nas águas daquela grande lagoa: de um lado, um pescador solitário jogando sua tarrafa para pescar a sua presa. Depois se recolhia para assar e degustar a ansiedade que lhe beliscava a barriga: do outro, meninos, pouco sabiam dos perigos das larvas dos lolôs. Instalavam-se em suas vísceras e — lentamente — provocavam a doença danosa e corrosiva da hepatopatia, a esquistossomose, em seus físicos ainda em formação.
Ao contrário das águas milagrosas do Mar Morto, a Lagoa do Paó era diferente. Os moluscos agarravam-se nas paredes do cais ou escondiam-se, formando uma miríade de micro-organismos, colados dentro de sua casca dura, confinados no interior de sua nocividade.
No entanto, algo milagroso, fascinante, ficava boiando na força daquelas águas. Por isso, trago-me de bem longe, vindo nessa viagem infinda, para tomar uns goles desse tempo líquido e vivo, esse pelo qual borbulham ainda algumas gotas de brilho no recolhido sensório. Algo me banha a alma quando me lembro dos abraços silentes que já arremessei à minha terra durante o curto tempo que passei no meu rincão. Abraços da Rua do Cruzeiro, da torre da Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, da Rua da Beira da Lagoa, da Rua do Rio, Livramento, do Tacho, do Teatro, Rua Getúlio Vargas, onde nasci e, até mesmo, para a internacionalidade inóspita da Rua Buenos Aires. A razão para o nome naquela rua hoje eu procuro, tento entender, não consigo e vou em frente.
Havia em tudo uma forma de paisagem, como se um jeito tenro e casto imprimisse gestos de fanfarras e euforias, desenhados pelos traços de nossas alegorias.
Os pequenos aviões teco-teco sobrevoavam por cima dos pés de Fícus da praça central. Entre o céu e a lagoa, faziam as suas manobras radiantes aos nossos olhos e, após levitarem sobre toda cidade, sumiam, entrando num túnel de poeira esbranquiçada sem mais nos permitir que fossem vistos.
Daí, então, ao invés de avião, ficávamos “a ver navios”. Recolhíamo-nos cabisbaixos, vazios de voos e de alegria.
O dia começava a morrer devagarinho, e nem sequer disso tomávamos conhecimento. Era confiscado pelas horas fugidias, mas a Lagoa do Paó, não. Depois de recolher-se à lenta escuridão, ainda ficava arremessando ao nosso leito, aos nossos ouvidos, os assobios dos sapos e o coaxar das pererecas em nossas noites frias de inverno. Os sapos, quando cantavam, em tom quase uníssono, era como que pedindo desculpas ao Frei Damião por não ter conseguido calar a única coisa que eles tinham para melhor anoitecer. A lagoa era um encanto, um marco e um manto conservado sobre os chãos tranquilos de minha pequena pátria, no peito e no semblante daquela época.
A infância, apesar de hoje meio envelhecida, meio gasta, nunca ousou morrer. Quem morre dentro de si, geralmente, é quem não teve muito tempo para viver. Por isso, só se vê bem quando se vê através dos olhares instigantes da amplidão, no retrovisor próprio das primeiras descobertas. Além de mar, lagoa, era rio e era lago, a Lagoa do Paó.
De repente, revelam-se os segredos de não havermos morrido, muito menos a Lagoa do Paó. Jamais poderia, tal qual o Mar Morto, ser chamada de Lagoa Morta. Ela foi e sempre será a nossa lagoa, o nosso mar, o nosso lago, o nosso rio, esse rio que vai passando e nunca deixa de passar.
Saulo Mendonça é escritor, poeta e haikaista