Assisti, há alguns anos, no Zarinha Centro de Cultura, ao documentário “O Homem que vê no Escuro”, sobre o professor e crítico de cinema João Batista de Brito. O filme tem direção, produção e roteiro do professor e amante do cinema Mirabeau Dias. A exibição contou com seleta plateia de amigos e intelectuais da cidade.
O documentário é uma homenagem merecida ao homem nascido em Santa Rita, em família numerosa, humilde e que, curioso, se lançou a estudar Letras. Foi no bairro de Jaguaribe que mergulhou na poesia e no cinema Santo Antônio, encantando-se com Giulietta Masina, Kim Novak, John Ford, "A Doce Vida" (1960) e com o cinema americano. Como ele próprio falou em entrevista, ”escorregou do útero para a sala de projeção”.
Em seu trabalho, Mirabeau também utilizou o acervo do site “Imagens Amadas”, incluindo 3 cenas marcantes para a transição de épocas/assuntos do homenageado. São cenas antológicas, com a voz de João nos diálogos de filmes, a exemplo de "Desencanto" (1945) e "Janela Indiscreta" (1965). Uma brincadeira jocosa com a voz dele na pessoa de atores, como James Stewart.
Conheci João Batista na minha turma de Letras da UFPB. Como ele mesmo disse, era um aluno tímido, mas já conhecido como autodidata. Naquela classe também estavam o professor de português e escritor Chico Viana e a professora Elisalva Madruga, só para citar algumas pessoas especiais ligadas à literatura. Eu, perdida numa noite suja de verão, encantava-me com as aulas de Virgínius da Gama e Melo e de Zélia Oliveira, mas não tinha a timidez intelectual de João, o arrojo de Chico nem as participações eloquentes de Elisalva. Ficava a ouvir... e apre(e)nder.
Depois fui aluna de João no próprio curso. E haja camadas para ler um poema! Como achava difícil a leitura dessa arte! Já na pós-graduação, fui novamente sua aluna em Teoria do Texto Poético e familiarizei-me com o que é uma Isotopia! Aventurei-me a ler o poema “Me(n)tira”, de Vitória Lima, que depois fez parte de uma publicação organizada pelo próprio João.
João também foi meu professor na pós-graduação, na disciplina de Cinema. Puro deleite. E haja diegese x discurso, contra-plongé, planos, decoupage, Eisenstein, Orson Wells, irmãos Lumière, André Bazin, e "Metrópolis" (1927)! Para fechar o ciclo de estudos JBB, assisti ainda a algumas palestras nos eventos culturais da cidade, e mais uma aula especial organizada pela professora Vilani Sousa, com direito a settings e trilhas.
Assistir ao documentário de Mirabeau Dias sobre João foi também um passeio sobre toda essa experiência/memória acadêmica e sobre a minha própria estrada de cinéfila. Passando por "Ben Hur" (1959) e "Tarzan" (1932-1971), no Cine Rex, "A Noviça Rebelde" (1965) no Plaza, "A Ponte do Rio Kwai" (1967) e depois a Nouvelle Vague no Municipal.
Eu saía do cinema em estado catatônico, sem entender nada de uma câmara still, nem metáforas visuais, nem silêncios..., nem "Blow Up" (1966). Saía literalmente em Transe, sem a Terra... Gostava mesmo de "Candelabro Italiano" (1962) e Troy Donahue..., e suspiros com os beijinhos na relva – Al di Lá! Ou melhor ainda, cantar Help e Ticket to Ride. Só muitos anos depois vim saber apreciar Godard, Antonioni... Com certeza as aulas de João fizeram parte deste meu aprendizado. "Os Incompreendidos" (1961) e "Casablanca" (1942), comentados e criticados, foram parte deste currículo.
Na minha ousadia, aceitei fazer uma leitura dramática do seu conto: “Um beijo é só um beijo” (Casablanca), e “Lanchonete” (A Rosa Púrpura do Cairo), 1985, ao lado do ator Waldemar Solha (olha minha petulância!), justo por ocasião da palestra do filósofo Edgar Morin, na UFPB.E como comprei a ideia, mais que atrevidamente, fui vestida com um longo preto de cetim e batom rouge carmin, para viver meus 15 minutos de Rita Hayworth...
Foi uma experiência literalmente cinematográfica.
No documentário, outra aula. Dessa vez, intercalada pelas perguntas perspicazes dos igualmente críticos: Luis Mousinho (meu colega de UFPB e também aluno das poesias com Bachelard e outros filósofos), Astier Basilio e Renato Félix (de quem me lembro ainda nos corredores do curso de comunicação). Mirabeau também participou das entrevistas, entrando assim no lado mais subjetivo da vida do crítico, conseguindo a proeza de pôr João para ler um conto seu, mostrar sua faceta desenhista, mesclando cenas dos seus desenhos com os rostos de familiares.
Ouvindo os relatos do homenageado sobre sua trajetória, descobrindo o escurinho do cinema em Jaguaribe, e suas leituras de jornais sobre filmes, não há como não lembrar da nossa vida de adolescente e concordar com João, quando ele diz que “simplesmente íamos ao cinema”. Cinema barato, Cinema de Arte, estávamos sempre no cinema. Para encontros, namoros, ou apenas nos extasiarmos e cantarolarmos com "Um Homem, Uma Mulher" (1966).
Na produção de Mirabeau, João também conta como a crítica surgiu na sua vida, a predileção pelo cinema americano e o desafio de juntar a linearidade desta linha com os outros tantos olhares do cinema europeu, e mais recentemente com os de outros mundos, como o asiático.
Fala do sonho, das atrizes/divas do seu imaginário e do seu fascínio sobre a recepção, o leitor de cinema. Quais filmes assistimos, como cada um reage diferentemente às cenas e construímos nosso próprio filme. Passeamos também sobre a referência ao crítico paraibano Barreto Neto, a que eu acrescentaria Martinho Moreira Franco e Paulo Melo.
Sou antiga leitora de João nos blogs, no jornal Contraponto, e, assistindo ao filme, senti uma angústia já compartilhada com algumas amigas, como Genilda Azeredo, professora de Literatura e Cinema da UFPB: a agonia de não ter visto todos aqueles filmes citados. Filmes que a geração anterior à minha teve o privilégio de vivenciar, mesmo que demorasse meses entre o lançamento e a exibição nas praças locais. Precisaria de 7 vidas e 7 noites para dar conta de acompanhar a vida no cinema, e, desde já, cobro aos dois um curso sobre a História do Cinema, com direito a filmes, discussões e Clube do Filme.
Sempre me rendo às pessoas que conseguem, por meio da força, da intuição e dos estudos, chegar lá. Lá no lugar da competência, do talento e da admiração.
Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora