Uma simples trouxinha de alho virou um poema. Aliás, já nasceu poesia. Desde que desabrochou além das fronteiras impostas, no frio gelado e escuro, sem a menor perspectiva de viver.
Mas a vida não mede esforços nem tem limites quando precisa despontar, florescer, renascer. Era um simples pacotinho com 3 dentes de alho, já sem pele, que ficou esquecido no gavetão da geladeira.
Amassado por baixo dos sacos de legumes, dele nem me lembrava mais. Após alguns dias, catando ideias para o jantar, eis que a trouxinha reluziu com o broto perfurando o alumínio, igual a pinto que bica a casca do ovo em busca de novos horizontes. Surpreso, trouxe-o à luz e ali estava a mensagem: Inexorável e determinada: a vida segue…
Em notinha divulgada no Facebook, ilustrada com a foto do “fenômeno”, a observação entusiasmada ganhou contornos poéticos. Com a peculiar sensibilidade, o professor e amigo Milton Marques Júnior assim se referiu ao que escrevi: Isto é “pura poesia… e drummondiana”!
Ora vejam só. Despretensiosamente e por mero acaso, revolvo batatas e dou-me com a vida em flor. Ou melhor, em broto. Dessa horta nasce uma nota que vira poema e nos traz Drummond. Como se vê, não há limites que a vida não transponha.
Mais tarde, Milton arremata: Leia “A flor e a náusea”!
Minha fraca memória, principalmente para nomes de livros e filmes, felizmente não tão ingrata com a música, instigou-me a buscar Drummond no Google.
E lá estava a “náusea”. O enjoo de viver, de respirar, de pensar... Enjoo de ser. Jamais de ver, de enxergar onde o nojo se perfuma, onde a pedra vira poesia e a flor rasga o asfalto. Mesmo com a repulsa frente a um mundo surdo e mudo, muito longe da justiça, mau cheiroso, alucinado, cercado de muros que não ouvem palavra alguma, nada impede o poeta de ver uma flor no meio da rua.
“Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Sob a pele das palavras há cifras e códigos”.
Para ele o tempo é pobre, o poeta é pobre, o poema é mau, mas a flor reluz. Mais que as coisas… “Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase”. Menos uma flor.
Menos o raminho que furou o alumínio na penumbra seca e fria do clima eletrizado. Sem nenhum raio de Sol, sequer uma nesga de luz, espremido, esquecido, o broto resplandece no impulso de viver. Irrompe no milagre, no desejo de existir, de criar, de procriar, e novamente semear.
Demorei a desfazer o mistério embrulhado. Preferia ganhar tempo em poder admirá-lo, ou quem sabe receoso de quebrar-lhe o encanto, ainda escondido. Mas o talo verde e rijo se insurgia cheio de vida, era pleno e desejava ir além da fantasia. Aberto e iluminado, inclusive por ideias, vimos clara a intenção de seguir o seu caminho. Era o solo seu desejo, era vida o seu destino. E assim ganhou espaço no canto de um vaso onde havia cebolinhas aguardando parceria, bem distinto do lugar sombrio e confinado aos legumes e verduras, seus antigos companheiros.
Era um alho, e não a flor, que de forma insegura, Drummond passou a mão. Ali ganhou beleza tanto quanto o crepúsculo que alternou o nosso olhar da trouxinha à janela. Não furou asfalto algum, tampouco havia ódio, nem a náusea do poeta. Mas brotou do escuro frio, deu à luz uma nova vida, como tudo que renasce com a ternura do olhar.
Germano Romero é arquiteto e bacharel em música