Andarilho das manhãs na areia fina e esfriada pelas lambidas do mar, ele viu boiando já na quebra das ondas uma garrafa azul. Estava tampada com uma rolha. Pegou-a e viu que dentro dela havia um papel. Uma mensagem:
"Levei quase uma vida para saber que o que sempre busquei só existia na minha fantasia. SOS para um sobrevivente numa ilha cuja localização nunca saberei."
Pelo estado da garrafa e também do papel, parecia que a mensagem fora escrita há anos. Provavelmente o náufrago já havia morrido ou quem sabe até resgatado.
Ele levou a garrafa para casa. Era talvez um sinal. Deixou-a num cantinho da garagem e levou a tirinha de papel para que servisse de marca entre imãs de geladeira.
Depois de um banho, ele abre os noticiários da internet. Uma estranha forma de vírus havia se espalhado por aquele país. A recomendação era de portas trancadas e isolamento. Uma casa estilo bolha. Uma casa UTI. Adeus caminhadas na praia, pois o mandatário de plantão proibiu qualquer saída das pessoas, mesmo num passeio solitário. Da casa abrigo à casa prisão, ele se viu deslocado de suas rotineiras andanças, da conversa afetuosa com a senhora que sempre varria a calçada no mesmo horário, sem que nem lixo houvesse. Daquelas prosas domingueiras sem padaria aberta, das conversas sobre o cotidiano tão comum e lúdico. Das fofocas daquela viúva que já tinha calos nos cotovelos de tanto investigar o que se passava na vida dos transeuntes do bairro. Dos banhos de sol dos bebês em seus carrinhos e das crianças corredeiras de calçada.
De início foi um pouco estranho. Ele gostava da sua casa, daquele cantinho que ele projetara para si e para os amigos de farra e lágrimas. Para matar o tempo, arrumação nos vários cômodos. Chegou até mesmo a mudar os móveis de lugar, como se aquilo criasse uma nova casa. Retirou sacos e mais sacos de lixo de papéis impensáveis, de contas de 7 anos, de fotocópias repetidas, e até mesmo de boletins de notas das séries primárias. Isto lhe tomou quase uma semana.
A segunda semana foi dedicada a arrumar antigos vinis por estilo e nome do intérprete. Depois uma centena de livros. Espirrou e se espantou com o nariz entupido de fungos. Seria o vírus que estava ali à espreita, escondido num livro de magia ou nos seus manuais de astrologia? Uma maldição por mexer em saberes exóticos e não científicos? Tomado de espanto, consultou-se com um amigo médico que o tranquilizou, pois aquilo era estado de alergia, não aos livros, nem ao seu conteúdo, mas aos residentes nas páginas, nos dorsos e capas. A vida se espalha invisivelmente em tudo.
A terceira semana foi dedicada a pequenos consertos que ela adiara há tempos. Tomou sua caixa de ferramentas, com martelo, parafusadeiras, cola, um alicate estranho que ele comprou e nunca usou, tesoura e um monte de arames e braçadeiras que nem se sabia o uso. Umas latas de tintas ressecadas que um dia coloriram aquelas paredes e portas, restos de madeira já apodrecida pela umidade e uma serrinha enferrujada adormecida entre elas. Foram poucos os retoques, mas muitas as recordações de um tempo de reforma.
Na última semana do mês, ele já não tinha mais revisões a fazer. Começou a limpar o que já estava limpo. Começou começos já começados. Cozinhou por um tempo e se satisfez ao saber que poderia ler sem pausa, assistir filmes antigos. A vida se tornou um ritornelo de revisões.
Ele cansou.
Cansou até de si mesmo. Cansou daquelas lives de artistas, jornalistas, amigos e gente da mídia. O sofá se transformou numa solitária. A geladeira num tormento de gelo e comidas sem sabor. Cansou das telas inertes com coisas virtuais tão insossas como comida de hospital. Cansou também das notícias apocalípticas sobre mortes. A mídia em geral sobrevive do terror e da ficção da novidade, mesmo que esta novidade seja por ela produzida.
A isto chamaram novo normal. Um mundo de protocolos que hiperindividualizam as pessoas. Máscaras e luvas e parabrisas para o rosto. Um mundo sem contato.
Ele foi assim atropelado pela ansiedade. Mais mortal de que aquele vírus que o trancafiou em casa. Uma morte diária de medo e falta de ar. As noites já não faziam sentido para ele. Tornaram-se um suplício. Para que dormir se o dia seria aquela máquina monótona que transformou sua casa em cela. Ele desejava pisar naquela areia só por um instante. Sentir a planta dos seus pés afundando por entre os grãos e depois lavados pela língua salgada das ondas.
Na angústia, o mundo perde seu sentido, as sete cores que gotejam o arco-íris ficam em tons de cinzaQueria o sol esquentando sua pele, pedindo que ele mergulhasse naqueles aquáticos lençóis azul-esverdeados. A ansiedade é algo que queima por fora. Ela transformava seis horas de insônia numa eternidade. Só os primeiros clarões da madrugada lhe causavam alívio. As manhãs eram vadias. Tão extensas. Ele buscava então encurtá-las com a alquimia da cozinha. Mas este mesmo lugar também era a rotina. Tentava ele dormir ao menos após o almoço. Nada. O fogo da ansiedade ardia-lhes os olhos e pulsava rápido o coração. Nas tardes morosas a respiração se acelerava em montões e tempos esparsos. Às vezes vinha-lhe a sensação de febre. Ao se por o sol, este mesmo astro que anunciava o fim da insônia lhe trazia a escuridão do espanto da ansiedade. Ansiedade vinda de nenhum lugar, mas alojada nele, nas curtas respirações e taquicardias breves. Ansiedade que diz respeito ao tempo que não tinha ou que não viria mais.
A ansiedade é uma fera à espreita do tempo. Ela é a devoradora do tempo. Ao devorar o tempo, encarcera a esperança. Enjaula o desejo e libera a fome de nada. A ansiedade é como a sede dos peixes: não há solução. Corrói unhas e carnes e seca a saliva. A ansiedade é o demônio do suor sem treino, do suor não salgado e frio. É um peixe de três dias em cima do balcão, exalando suas ardências de morte, quase se liquefazendo numa vida dissecada de vida.
Durante três dias, ele se viu um moribundo. Doía-lhe tanto o estômago como se o avesso fosse a arquitetura plausível para o corpo. Por duas noites ele capotou e dormiu.
Na manhã seguinte, uma fome. Foi ver umas frutas ainda boas para um café da manhã. Abriu um melão ainda fresco, mas não o provou. Talvez um café fosse a necessidade daquela manhã. Nada. Quem sabe algo sólido e quente, como ovos e torradas. Nada tinha gosto naquela manhã. A sensação de enjoo o invadiu desde o estômago até a ponta da língua. Vomitou. Ficou tonto. Quem sabe agora seria mesmo o vírus a lhe consumir. Nada mesmo, nem água.
Havia um vazio que não podia ser preenchido. Ele foi tomado pela angústia. Voltaram a respiração plena e o coração batendo ritmado. Havia uma fome, mas os alimentos eram barrados à porta da boca. A sensação era de falta. Mas da falta de uma coisa perdida, de algo que não se nomeia, do obscuro sem significância.
A angústia é o oco de si. Um buraco de poço à beira do mar que nunca se esgota, mesmo com tanta areia sendo retirada. Camadas sobre camadas num exercício do mesmo. A angústia é um demônio de mil bocas. Sua fome não cessa e o vazio é seu néctar predileto. Uma implacável incerteza de si e do mundo é a digestão do demônio da angustia. Azuis sem azuis e cedro sem cheiro. Dedos sem tato e comidas com gosto de vento. Lágrimas que não despencam dos olhos e palavras torcidas como grunhidos. Na angústia, o mundo perde seu sentido, as sete cores que gotejam o arco-íris ficam em tons de cinza, o tempo para com seus tic-tacs num devassador silêncio.
Então ele se enrosca qual feto no útero. Invade-lhe uma sombra de mil noites e dias sem sol. Ele se encaramuja e se veste de lutos. O que lhe faltava nas noites domina-o como um ente obsessor: o sono. Muitas horas de sono e a cama como fiel companheira. Um cheiro pestilento de lençóis tão usados e crostas do tempo parado na pele, por entre os dentes e até mesmo por entre fios de cabelos oleosos e opacos. Ele já nem sente que há coração batendo e sangue fluindo. Já não há o tempo e tampouco o vazio.
Há o nada. O demônio da depressão é feroz e arteiro. Vem lento por baixo de cobertas e cria uma membrana nos olhos e lábios. Ele traz a opacidade e o silêncio. Não o silêncio das preces, não o silêncio da meditação. O silêncio que se escuta minutos depois da última pá de terra nos ataúdes envernizados. O maldito silêncio dos sepulcros ante o entardecer, até onde mesmo os pássaros revoentos e ligeiros se calam. A depressão é o corpo sem vida vivo. Ela nada mais consome, pois que é já toda consumação. Não é morte que vem de fora, aquela besta ceifadora, mas um morrer por dentro. O demônio da depressão é calado e sutil. Não causa nem febre e nem dor. É um cobertor do cansaço da vida e da escuridão dos sonhos. Ela extingue o tempo, tornando tudo um mesmo ponto. Buraco negro das ilusões, iras, afetos e desejos. O demônio da depressão cala as células e assombra as pulsões.
Numa noite sem fim, ele se arrasta e se banha. Entra no chuveiro com aquele pijama de dias. Deixa a água escorrer e molhar o tecido, molhar sua pele. Ouve aquele canto de gotas que parecem rasgar-lhe a pele, limpar a visão. A água que escorre no ralo também leva parte desta demão seladora de vida. Sente o aroma de um óleo que acabou por se derramar e depois a carícia dos fios penteados da tolha. Bateu fome. Bateu vida renovada.
Ele então pega a garrafa azul do óleo derramado. Lava por dentro e retira o rótulo. Só vidro azul ela fica. Vai à escrivaninha e toma um pedaço de papel, uma caneta e escreve:
“Levei quase uma vida para saber que o que sempre busquei só existia na minha fantasia. SOS para um sobrevivente numa ilha cuja localização nunca saberei.”
Pega uma rolha de um vinho antigo e sela a garrafa com a mensagem. Desafiando a autoridade e o consenso, caminha até a praia. Seus pés voltam a sentir aqueles grãos feito acupuntura e a água salgada povoada de sargaços soltos das cabeleiras dos corais. A maré estava seca e rasa. Ele anda uns tantos metros mar adentro. Segura a garrafa azul do náufrago que ele era e arremessa para que tantos outros náufragos de si possam um dia experimentar os recomeços, os reinventos de si e do mundo.
Adriano de Léon é doutor em ciências sociais, professor e escritor