Existe uma diferença entre foco narrativo e ponto de vista que não é fácil de ser observada. Essa diferença se torna mais palpável quando o narrador claramente guia a visão do personagem sobre um determinado fato, intrometendo-se nos seus pensamentos, passando-lhe a palavra num discurso direto, falando por ele num discurso indireto ou mesclando seu discurso ao do personagem, através do discurso indireto-livre. É mais difícil distinguir esses dois elementos da narrativa, quando o narrador faz essa mudança de modo sutil, sem abandonar a narração. Aproveitamos para lembrar que a narração é apenas um dos elementos estruturais da narrativa.
O foco narrativo, como sabemos, pode ser de primeira pessoa ou de terceira pessoa. No primeiro caso, temos um narrador autodiegético – que narra a própria história (Bento Santiago, em Dom Casmurro, de Machado de Assis) – ou um narrador homodiegético – que narra a história de um personagem mais importante do que ele (Paulo, em Lucíola, de José de Alencar).
Na narrativa de terceira pessoa, o narrador encontra-se fora da história (diégese), por isso é chamado de narrador heterodiegético — o que narra a história de um diferente. Entenda-se diferente no sentido de que o narrador não é personagem, pelo menos com relação aos fatos que ele narra. Essa tipologia abarca a maioria das narrativas dos romances.
Como podemos fazer, exatamente, a diferença entre um e outro recurso? Diremos que o foco narrativo é a posição que o narrador assume para contar uma história; já o ponto de vista é uma visão total ou parcial dos fatos narrados, que pode ser transmitida ao leitor pelo narrador ou pelos personagens, independente de qual seja o foco narrativo. Essa sutileza é que provoca a confusão entre esses dois elementos estruturais. É preciso dizer que, quando o ponto de vista do personagem acontece por intermédio da onisciência do narrador, do discurso direto, do discurso indireto e do discurso indireto-livre, trata-se de uma ocorrência fácil de identificar. O que nos interessa aqui é como o ponto de vista pode acontecer através da narração, cujas rédeas estão nas mãos do narrador.
Farei a distinção com o romance Le ventre de Paris (O ventre de Paris, 1873), de Émile Zola, pelo fato de que estou com ele nas mãos e o exemplo está à vista. O romance se desenrola tendo como ambiente o então mercado livre de Paris, situado em Les Halles, região importante da cidade, entre o Chatêlet e o museu do Louvre. Hoje, o antigo mercado está transformado na grande Gare Chatêlet-Les Halles, que abriga um shopping em seu subsolo. Na época em que se passa a história, 1858, fazia apenas 4 anos que o mercado central começara a ser construído (1854-1870). O personagem central do romance, Florent, retorna a Paris, após a sua deportação e prisão para a Guiana Francesa, de onde foge. Florent fora injustamente preso (Il se laissa prendre comme um mouton, et fut traité en loup), suspeito de integrar os levantes de dezembro de 1851, ocasionados pelo golpe de estado que fez de Louis Bonaparte, um ano depois, o imperador Napoleão III.
Encontrado caído, de cansaço e de fome (il était gris de misère, de lassitude, de faim), no meio da rua, Florent é ajudado por Madame François, hortaliceira, que, ironicamente, o conduz para o grande mercado de Les Halles, onde ela costuma vender os seus produtos, sobre um leito de legumes. Lá, ele se encontra com Claude Lantier, jovem pintor conhecido da hortaliceira, sendo levado para um passeio pelo mercado que Florent não conhecia, vez que fora preso antes do início de sua construção. Até esse ponto, temos uma narrativa de terceira pessoa, cujo ponto de vista é do narrador.
O texto a seguir (Capítulo I), em tradução operacional nossa, apresentará a transição do ponto de vista do narrador para o ponto de vista do personagem, sem que o narrador abandone os recursos da narração-descrição na terceira pessoa:
“E Florent olhava os grandes Halles saírem da sombra, saírem do sonho, em que eles [ele e Claude] os haviam visto, alongando ao infinito suas construções pelo dia. [...] Claude, porém, entusiasmado, estava de pé sobre o banco. Ele forçava seu companheiro a admirar o dia se levantando sobre os legumes. Era um mar. Ele se estendia da ponta de Santo Eustáquio à rua dos Halles, entre os dois grupos de pavilhões. E, na duas pontas, nos dois cruzamentos, a onda crescia ainda, os legumes submergiam o calçamento. O dia se levantava lentamente, com um cinza muito suave, lavando todas as coisas, com uma tonalidade clara de aquarela. Estes amontoados ondulantes como vagas apressadas, este rio de verdura que parecia fluir na barragem da calçada, igual ao desabamento das chuvas de outono, tomavam sombras delicadas e peroladas; violetas suaves, rosas tingidas de leite, verdes afogados nos amarelos, todas as palescências que fazem do céu uma seda cambiante ao nascer do sol; e, à medida que o incêndio da manhã subia em jatos de flamas, ao fundo da rua Rambuteau, os legumes despertavam ainda mais, saíam do grande azulado se estendendo na terra.
As saladas, as alfaces, as escarolas, as chicórias abertas e ainda engorduradas de húmus, mostravam suas cores explosivas; os pacotes de espinafre, os pacotes de trevos, os buquês de alcachofra, os amontoados de favas e de ervilhas, os empilhamentos de alfaces romanas, atadas por uma tira de palha, cantavam toda a gama do verde, da laca verde das vagens ao forte verde das folhas; gama sustentada que ia se esvaindo até as cores variadas dos pés de aipo e dos molhos de alho-poró. Mas as notas agudas, o que cantava mais alto, eram sempre as manchas vivas das cenouras, as manchas puras dos nabos, semeados em quantidade prodigiosa ao longo do mercado, iluminando-o com o colorido harmonioso de suas duas cores. No cruzamento da rua dos Halles, os repolhos e as couves faziam montanhas; os enormes repolhos brancos, compactos e duros como bolas de metal pálido; as couves cujas grandes folhas pareciam bacias de bronze; os repolhos roxos, que a aurora mudava em florações soberbas, lia de vinho, com manchas de carmim e de púrpura sombria. Do outro lado, no cruzamento da ponta de Santo Eustáquio, a abertura da rua Rambuteau estava atravancada por uma barricada de abóboras alaranjadas, nas duas bandas, se estendendo, alargando suas entranhas. E o verniz acobreado de um cesto de cebolas, o vermelho sanguíneo de um monte de tomates, o fenecimento amarelado de um lote de pepinos, o violeta profundo de um cacho de berinjelas, aqui e ali, se iluminavam; enquanto grandes rabanetes negros, arrumados em toalhas de luto, deixavam ainda alguns furos de trevas no meio dos prazeres vibrantes do despertar. Claude batia palmas para este espetáculo. Ele achava “estes danados de legumes” extravagantes, loucos, sublimes. E ele sustentava que eles não estavam mortos, que arrancados na véspera, eles esperavam o sol da manhã seguinte para lhe dizer adeus sobre as ruas dos Halles. Ele os via viver, abrir suas folhas, como se eles fossem ainda pés tranquilos e quentes no estrume. Ele dizia ouvir ali o suspiro de todos as hortas do subúrbio.”
As saladas, as alfaces, as escarolas, as chicórias abertas e ainda engorduradas de húmus, mostravam suas cores explosivas; os pacotes de espinafre, os pacotes de trevos, os buquês de alcachofra, os amontoados de favas e de ervilhas, os empilhamentos de alfaces romanas, atadas por uma tira de palha, cantavam toda a gama do verde, da laca verde das vagens ao forte verde das folhas; gama sustentada que ia se esvaindo até as cores variadas dos pés de aipo e dos molhos de alho-poró. Mas as notas agudas, o que cantava mais alto, eram sempre as manchas vivas das cenouras, as manchas puras dos nabos, semeados em quantidade prodigiosa ao longo do mercado, iluminando-o com o colorido harmonioso de suas duas cores. No cruzamento da rua dos Halles, os repolhos e as couves faziam montanhas; os enormes repolhos brancos, compactos e duros como bolas de metal pálido; as couves cujas grandes folhas pareciam bacias de bronze; os repolhos roxos, que a aurora mudava em florações soberbas, lia de vinho, com manchas de carmim e de púrpura sombria. Do outro lado, no cruzamento da ponta de Santo Eustáquio, a abertura da rua Rambuteau estava atravancada por uma barricada de abóboras alaranjadas, nas duas bandas, se estendendo, alargando suas entranhas. E o verniz acobreado de um cesto de cebolas, o vermelho sanguíneo de um monte de tomates, o fenecimento amarelado de um lote de pepinos, o violeta profundo de um cacho de berinjelas, aqui e ali, se iluminavam; enquanto grandes rabanetes negros, arrumados em toalhas de luto, deixavam ainda alguns furos de trevas no meio dos prazeres vibrantes do despertar. Claude batia palmas para este espetáculo. Ele achava “estes danados de legumes” extravagantes, loucos, sublimes. E ele sustentava que eles não estavam mortos, que arrancados na véspera, eles esperavam o sol da manhã seguinte para lhe dizer adeus sobre as ruas dos Halles. Ele os via viver, abrir suas folhas, como se eles fossem ainda pés tranquilos e quentes no estrume. Ele dizia ouvir ali o suspiro de todos as hortas do subúrbio.”
Fica muito claro que o início do texto – “E Florent olhava os grandes Halles saírem da sombra ... a onda crescia ainda, os legumes submergiam o calçamento.” – está sob o controle do olhar do narrador. Vemos, nesse trecho o entusiasmo de Claude, admirado com o despertar do dia sobre a massa de legumes, esparramados por todo o mercado. A partir do período seguinte, o que se vê é uma profusão de cores que nos chega sob a ótica do pintor Claude, não mais do narrador. É emblemático que, no momento em que o narrador abandona a narração-descrição em favor do ponto de vista do personagem, o parágrafo se inicie com a seguinte frase:
“O dia se levantava lentamente, com um cinza muito suave, lavando todas as coisas, com uma tonalidade clara de aquarela.”
Quem se interessa pela profusão e nuance de cores é Claude, por ser pintor, por ser essa sutileza na diferenciação de tons a matéria-prima de seu trabalho. Jamais poderia partir de Florent, esfomeado e cansado para poder apreciar belezas que não fossem um alimento para lhe matar a fome, como ele faz com uma cenoura que apanha do chão e põe inteira na boca, com medo de ser descoberto pelo dono do legume.
Esse ponto de vista de Claude se alonga até quase o final do trecho acima, momento em que o narrador retoma para si as rédeas do discurso, tendo o cuidado de deixar claro que toda aquela focalização partira do personagem – “Claude batia palmas para este espetáculo. Ele achava ‘estes danados de legumes’ extravagantes, loucos, sublimes”. [...] Ele dizia ouvir ali o suspiro de todos as hortas do subúrbio.”
O bom escritor sabe semear estas sutilezas ao longo de sua narrativa. Resta-nos, como leitores, fazer a leitura atenta do texto, para saber o momento em que podemos distinguir o foco narrativo do ponto de vista.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL