O ano era 1979. Época de turbulências. Muitas mudanças na vida. A roda que não era gigante! O endereço era o edifício Gravatá, de onde dava...

Está tudo acabado, negro amor

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O ano era 1979. Época de turbulências. Muitas mudanças na vida. A roda que não era gigante! O endereço era o edifício Gravatá, de onde dava para ver o mar. As montanhas? De Sísifo. Muitas pedras a rolar. A música era Wild Horse, minha preferida dos Rolling Stones. E as noites de sexta-feira ferviam. Ah! Se o meu fusca vermelho falasse!

João Pessoa não tinha trânsito nem violência e eu saía sozinha de saia longa, desbravando a noite. Nos pés? Os caminhos incansáveis, uma sandália de dedo de rabicho, uma bolsinha bordada do Peru, na qual carregava meus sonhos de despojamento, prazer, música e rock and roll. O furacão, então, se anunciava, fosse na música ou nos sentimentos.

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O encontro era no apartamento aconchegante de um casal amigo, no edifício São Marcos. Chegávamos sem combinar e logo fazíamos uma rodinha.

Em instantes, o dono da casa começava o seu som no órgão e nós iniciávamos a pajelança. Castaneda rondava a noite, que nem sempre era aos domingos! Não valia conversa séria. Só o ritual dos descasados, descamisados, desenfreados. E cantávamos e dançávamos e nos aninhávamos. Bob Dylan na caixa! Ouvíamos "Hurricane" até o LP se desmanchar. Hoje ainda me arrepio quando escuto os acordes dessa música. Depois veio "It's All Over Now, Baby Blue". E George Benson. E Mascarade. Interessante, de uma certa forma estávamos mesmo mascarados. De nós mesmos, acho.

Outro dia eu me perguntava: "tá falando comigo?", assim como o fez o personagem de Robert de Niro, com cabelo estilo moicano, frente a um espelho, reafirmando sua loucura identitária, no filme "Taxi Driver" (1976). Uma pergunta indecifrável. Em tempos sem celular e sem computador, nossas reuniões eram no escuro mesmo. Quando não encontrava os amigos nas noites de sexta, saía pelos points da cidade: Canton, Elite, Motor Car, casa de um e de outro. Perdidos na noite, num barco sem vela, sem prumo e sem norte. Ah! A loucura! Um perfeito destino para aqueles que não tinham um para chamar de seu. Por vezes, voltava com meu coração em tempestade, solitária, e botava "Hurricane" na vitrola, para os últimos desejos, aprisionados em um bonde.

De Bob Dylan pulamos agora para o conto "Where Are You Going, Where Have You Been?" da escritora norteamericana Joyce Carol Oates. O título extenso ela tomou emprestado da música de Chris Rea, do album "The Blue Café". Inspirou-se num caso real e chocante de um triplo assassinato cometido por um serial killer em Tucson, Arizona. Certa vez, leu um artigo na revista Life e pensou que o episódio tinha esse estranho personagem, com suas botas infladas e um certo charme grotesco. Para Oates, ele era uma personificação de algo que emanava da cultura adolescente e seus perigos ocultos. A estória de um assassino envolvente, capaz de tirar a vida de três garotas, era uma inspiração para uma narrativa do ponto de vista da vítima em potencial.



Oates dedicou aquele que é um de seus mais populares textos a Bob Dylan, por haver se inspirado, também, na letra da música "It's All Over Now, Baby Blue", do compositor e ganhador do prêmio Nobel de Literatura:

The vagabond who´s rapping at your door
Is standing in the clothes that you once wore
Strike another match,
Go start anews
And it´s all over now, Baby Blue
O vagabundo que bate à sua porta
Vestindo as mesmas roupas que um dia você usou
Risque outro fósforo,
Comece de novo
E tá tudo acabado agora, Baby Blue.

A canção teve uma versão brasileira, composta por Caetano Veloso. E lá ia eu, dessa vez num fusca verdinho, ouvindo Negro Amor, na voz de Gal Costa.



Em "Where Are You Going, Where Have You Been?", a adolescente Connie, inocente como tantas outras, deleita-se com seu corpo e sua aparência, percebendo a sedução que dele emana. O espelho, essa é a questão! Ela não deseja responder certas perguntas feitas pela mãe controladora, pela irmã careta, June, e por tantos outros. Quer frequentar os botecos, ir ao drive-in e sonhar com os garotos. É o momento certo para a cilada, e os homens mais velhos e mal intencionados sabem disso. Todos sabem. Menos as garotas dessa idade e, às vezes, até as mais velhas (conferir o filme Thelma & Louise, 1991).

Connie encontra uma pedra no meio do caminho: um sujeito mais velho, um predador, que, ao ver aquela mocinha exalando sensualidade pelos poros, apronta sua armadilha. O tal mito do Barba Azul, tão bem desfilado por Clarissa Pinkola Estés, em "Mulheres que Correm com os Lobos".
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A grande arte do conto está exatamente nas cenas de suspense, entre experiência e inocência (confira nos poemas de William Blake: "The Lamb and The Tiger"); entre o medo e o prazer/poder; entre o encurralamento/virilidade e a impotência/fragilidade, e claro com um final em aberto, ambíguo e aterrorizador.

O que é que rola para uma garota ser fisgada por um homem desconhecido? O que é dito e camuflado nessa hora? Que discurso? Que palavras poderosas são essas? O que o faz ganhar a confiança dela assim às cegas, tendo por desfecho o abismo e a escuridão?

Estória como tantas outras que nós, indignados e com o estômago embrulhado, nos deparamos cotidianamente nos jornais, na TV e na internet, mas que, contada por uma escritora de excelência, fica mais sugestiva e paralisante.

E na sincronicidade de homenagear Bob Dylan, eis que estava indiretamente cantarolando "Hurricane", tentando perguntar a meus jovens alunos "Where are you going?" (para onde vocês estão indo?), procurando estabelecer relações musicais, literárias, temporais e, claro, resgatando minhas doces memórias, especialmente das andanças pelas noites de João Pessoa.

Com a permissão do senador Suplicy: the answer my friend: is blowing in the wind!!

A resposta está soprando no vento!


Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora

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  1. José Carlos Alves Coelho22/7/20 10:16

    Os porres de rum com coca cola, os primeiros baseados, as "corridas de submarino" no aeroclube, muito sexo com amor, tudo isso embalados por essas músicas... Era uma delícia !

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  2. Parabéns Ana querida. Belíssimo texto entrecortado de diálogos com intertextos que se perpetuam. Palmas para que te quero ...

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  3. Ana, desculpe a minha falta de atenção, enviei meu comentário como " unknown". Leia Nadilza. Bj

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