Nós cinco passávamos uma temporada na cidade do Porto porque a esposa estava cursando o doutorado. Antes de prosseguir, necessito explicar ...

Dois peixes

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Nós cinco passávamos uma temporada na cidade do Porto porque a esposa estava cursando o doutorado. Antes de prosseguir, necessito explicar o número que menciono, pois, visivelmente, éramos somente três. Estávamos por lá ela, eu e Eduardo, com sete anos, e os gêmeos, ocultos no ventre da doutoranda, com seus oito meses de gestação.

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Nos horários livres das aulas da pós-graduação, explorávamos a cidade juntos. Às vezes tomávamos um táxi, outras vezes um ônibus. Também saíamos a pé. Ressalto que é maravilhoso caminhar a pé por qualquer cidade de Portugal. Cada casa é um nicho arquitetônico que revela diferentes formas e épocas. O passeio público é livre e limpo. Por mais deserta que seja a rua, viela ou beco, não há o que temer. Quando escurece, tampouco há susto, o que faz da caminhada em terras lusas um ótimo programa.

Evitávamos Shoppings e outros endereços do tipo. Preferíamos conhecer a cidade profunda e cotidiana: livrarias, mercados, praias, praças, tasquinhas, monumentos, parques, escolas, faculdades. Numa dessas incursões, resolvemos voltar a Matosinhos, cidade vizinha ao Porto. Extremamente turística, elegante. Já tínhamos visitado o aquário, o Castelo do Queijo, as piscinas das marés de Leça das Palmeiras e outros destinos mais evidentes e, dessa vez, queríamos apenas caminhar pelo litoral, bater perna pela praia, conhecer o dia-a-dia dos habitantes locais.

Fomos de táxi e pedimos ao motorista que nos levasse por onde os moradores transitavam, longe dos roteiros turísticos, pela cidade real e viva. Quando já estávamos próximos à praia, avistamos uma rua com numerosos restaurantes (ou marisqueiras), um ao lado do outro, com os seus respectivos braseiros à frente de cada um. Nunca tinha visto nada parecido. Era o paraíso dos frutos do mar.
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Aquilo nos chamou atenção e também nos lembrou que já estávamos próximos à hora do almoço. Solicitamos parada e ficamos por lá.

Não tivemos pressa de nos sentar. Passeamos tranquilamente enquanto escolhíamos uma mesa na calçada. O aroma de pescado assado oriundo das churrasqueiras era delicioso, inebriante e, por si só, um aperitivo.

Preferimos uma marisqueira que tinha um grande aquário logo na entrada, com peixes de diversas espécies e tamanhos. Achei todos tão bonitos, ali nadando em toda a sua exuberância.

Contudo, a função do aquário não era ornamental, conforme me esclareceu o simpático garçom, um imigrante moçambicano. Os peixes que ali estavam podiam ser escolhidos para serem preparados e servidos nas refeições. Era um diferencial do restaurante. Uma espécie de serviço de comida “ultrafresca”. De fato, mais fresco do que aquilo, só se o cliente mergulhasse no tanque de vidro e devorasse o animal a dentadas, ali mesmo, a maneira de um tubarão humano.

Confesso que a idéia em nada me agradou. A possibilidade de escolher um ser vivo e vê-lo, pouco depois, assado e servido com legumes, apenas para satisfazer o meu deleite gastronômico, pareceu-me um tanto mórbida.

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Escolher um deles para o almoço nem me passou pela cabeça. Por mais que alguém possa interpretar isso como uma hipocrisia refinada, indicar um daqueles seres vivos e sentenciá-lo à morte me pareceu algo intensamente arrogante e profano. Se fossem hortaliças ou frutas, tudo bem. Mas com bichinhos simpáticos semoventes de carne branca, não funciona. Nos Andes, fiquei tão feliz de conhecer uma lhama que quando tentaram me servir um guisado da carne do animal, interpretei aquilo como um prato canibal. Não consegui engolir. “Sensibilidade seletiva”, podem dizer. De fato, mereço esta acusação.

Certa vez Umberto Eco disse que um dos seus sonhos de infância era tomar dois sorvetes simultaneamente, segurando um em cada mão e revezando as lambidas. Mas os seus pais, católicos sinceros, conservadores e cultores da modéstia cristã, nunca o permitiram, por considerem tal ato como um gesto extravagante. Penso que aquilo deve ter se interiorizado poderosamente nele, criando uma espécie de superego que nunca o permitiu realizar a façanha.
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No meu caso, não sei bem determinar que fleuma moral, ecológico, cultural ou espiritual me impede de condenar um peixe ou qualquer outro animal à morte apenas para vê-lo, logo depois, estripado, cozido e pronto para o consumo. Não consigo deixar de ver isso como um capricho pequeno burguês que pretende emular as excentricidades de algum imperador romano desvairado. Eu sei. Os amantes do óbvio vão me dizer que, de qualquer modo, um bicho foi morto para que o meu almoço pudesse ser servido. Tudo bem. Eu aceito a culpa de ter concorrido para o fim dos peixes que me alimentaram naquele dia. Só não suportaria o fardo de havê-los sentenciado à morte, tendo-o ainda bem à minha frente. Bom-mocismo, sonsice, beatice, pusilanimidade? Não sei. Como diria o Chicó de Ariano Suassuna: “só sei que foi assim”.

Segundo o doutor Jagadish Chandra Bose, o grande gênio indiano, que concebeu a doutrina do “vitalismo”, todas as coisas estão vivas, até mesmo os minerais, o que levou Aldous Huxley a dizer que os engolidores de espadas se equivalem aos frequentadores de churrascarias. Embora aprecie a ironia, não concordo com Huxley e, mesmo que não comungue da opinião do filósofo Peter Singer sobre o consumo de animais, admito que ele tem razão quando afirma que a libertação animal também é uma libertação humana.

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Eu até admiro a sensibilidade de Rubem Alves, que elogiava a sopa, por ser a redenção das coisas perdidas; e que condenava o churrasco, por ter um caráter bem menos nobre, inclusive com contornos sacrificiais. Mas não sou assim. Eu como churrasco. Em meu primitivismo, eu ainda estou distante dos cuidados dos veganos, vegetarianos e demais defensores incondicionais da dignidade animal e não me orgulho disso. Admito que não tenho os mesmos escrúpulos e pruridos de pessoas mais conscientes e evoluídas do que eu neste quesito tão importante.

Por ora, devido as minhas graves limitações morais e espirituais, fico com o que foi anunciado ao apóstolo Pedro em Atos 10:12. Segundo o texto, “todos os animais quadrúpedes, feras, répteis e aves do céu” podem constar da dieta dos seres humanos. Ainda que não estejam incluídos nesta passagem, estou tranquilo quanto aos peixes porque Jesus multiplicou dois deles para serem comidos pela multidão em Marcos 6:41.

Naquele dia, na marisqueira de Matosinhos, as “vítimas” também foram duas: um espadarte e um carapau, ambos assados na brasa, e servidos com babatas ao murro, azeite de oliva virgem e um bom vinho verde.


Emerson Barros de Aguiar é escritor neoarmorial, teólogo e jusfilósofo progressista

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