Numa das encostas da Serra das Velhas, nas proximidades da Vila de Santa Fernanda, um olho d’água escorre suavemente, entre as pedras e a v...

Dois pássaros

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Numa das encostas da Serra das Velhas, nas proximidades da Vila de Santa Fernanda, um olho d’água escorre suavemente, entre as pedras e a vegetação, formando um pequeno riacho. Mais adiante, em suas margens, dois majestosos jatobás sombreiam a correnteza, um de frente para o outro. Nessas árvores há dois pássaros.

Das terras geladas do Norte, para além da Serra das Velhas, pequenos proprietários de terras e arrendatários fugiram da fome e dos assaltos de saqueadores, numa guerra que durou sete anos. A maioria dos imigrantes partiu para as áreas quentes do Sul, carregando o que podiam em carros de madeira e carroções puxados por juntas de bois.

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Augusto e seus pais fizeram o sentido contrário, e se aventuraram pela Serra das Velhas com as reservas de uma década e o que podiam transportar nos lombos de quatro mulas. Quinze dias depois tinham chegado nos arredores de Santa Fernanda onde compraram uma propriedade de poucos alqueires e um pequeno rebanho de gado.

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Quando a missa terminou a mãe de Augusto adiou uma visita, assim como as compras da semana, e voltou às pressas para casa sem saber como dizer aquelas coisas ao filho. Chegou com expressão séria, cortante. Atravessou o terreiro, subiu os batentes do alpendre, nem o viu na varanda.

- O que foi, mãe?

- Meu filho, aquela moça não presta para você!

- O que foi, mãe? Fala! Fala! – gritou, sacudindo-lhe os braços.

A confissão fulminara-o como se fosse um raio. Seu corpo desabou sobre uma cadeira e seu rosto tomou a forma de uma escultura.

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Os dois se viram pela primeira vez na procissão do Senhor Morto... As arandelas das fachadas das casas mal iluminavam as calçadas, e se não fossem as tochas conduzidas por alguns fiéis, aquele instante jamais teria acontecido.

O rosto de Joana surgiu como num clarão, destacando-se entre as centenas de outros rostos que se espremiam nas ruas estreitas e irregulares. Outra tocha iluminou o rosto de Augusto, e foi só por um segundo, o tempo de Joana fitar nele e descobrir uma expressão de procura e desejo. A luz sumiu, restou um vulto em movimento. Ela o seguiu, a luz clareou novamente. Os olhos de Joana projetaram fascínio; os de Augusto, alívio e surpresa.

Ele parecia ter feito uma grande descoberta e essas impressões o assaltaram de tal modo que passou aquela noite e o resto da semana de olhos abertos sem conseguir dormir. Tinha encontrado a mulher da sua vida.

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Ele pensou que o poder do amor e da coragem realizaria a vontade de seu coração. As lembranças e o anseio passaram a atormentá-lo. Anos atrás tivera sonhos recorrentes com aquele rosto, e quando era apenas sonho, ele não sofria. Agora havia um rosto real, e essa realidade causava grande agitação em sua mente. Joana era de família abastada, gente influente em Santa Fernanda. Melhor que fosse campeira, imigrante como ele. Mas não tinha domínio sobre o acaso, e portanto precisava lutar, mas onde estavam suas forças?

O Dia do Descanso era uma feira que acontecia a cada três meses. Mascates, artesãos e produtores se reuniam na praça da Vila. Havia grande movimentação de pessoas circulando entre as fileiras de tendas que ofereciam produtos a preços mais baixos. No largo da igreja artistas de ruas, entre mágicos e músicos, exibiam seus números para uma pequena multidão que também se enfileirava para se consultar com o indiano Nastrah, mestre em ocultismo e vidência.

Augusto caminhou através das tendas e barracas tentando se livrar daquelas pessoas. Joana devia estar ali. A Vila inteira estava ali. Os gritos dos mercadores e o murmurinho dos visitantes se confundiam com a música vinda do largo da igreja. O sol ardia, o calor estava sufocante. Ele andou mais, agora o som da música se fez mais intensa. Havia algum espaço e um homem fazia mágicas. Impaciente, ele se moveu, livrando-se de alguns ambulantes. Por fim, suspirou, desolado. Ela não estava em lugar nenhum! E decidiu voltar, mas inesperadamente percebeu uma silhueta na tenda do vidente. Devia ser ela. Era!

Joana avistou Augusto, veio em sua direção e abraçou-o fortemente.

- O que houve? – perguntou o rapaz espantado.

- O mestre Nastrah falou sobre meu futuro! - disse com entusiasmo. - Ele viu seus passos em meu caminho...

- Mas o destino não é uma verdade absoluta, Joana… depende das nossas decisões... Tem sua família... Eles não vão permitir!

- Eu não me importo...

- Isso não vai dar certo, Joana!

- Claro que vai dar certo – disse com firmeza.

Porém, ao mover a cabeça seus olhos encontraram os do pai, à distância. Encarava-os imóvel, com desprezo, tez rígida. Ela teve um sobressalto, mas não se abateu. E continuou:

- Às vezes encontramos no caminho alguns obstáculos, mas, se tivermos vontade e determinação...

Augusto a interrompeu, percebendo algo estranho. Virou-se. Viu apenas pessoas em movimento, outras admiradas aplaudindo os artistas de rua.

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Despediram-se. Ela desapareceu no meio da multidão enquanto ele ficou no mesmo lugar, desolado e lembrando o dia em que começaram a fazer a travessia da Serra e ele pensara que ali seguramente estava o maior desafio de sua vida.

Do alpendre a mãe viu o gado descendo para beber água. Quando Augusto desapareceu nos arbustos adiante, ela ficou com os pensamentos cheios de aflição. Temia alguma desgraça, ele andava estranho, arredio, ensimesmado, e muito mais agora, depois de ter-lhe contado o que houve na igreja. Ficou remoendo as lembranças: “A moça até que andou arriada por ele... Eu mesma vi na procissão, na praça... Mas o pai a procurou, afrontou, deixou dito: “ Mulher, afasta teu filho da minha família! Não deixe acontecer imprevisto para tirar conclusão! ” “ O senhor vai mandar matar meu filho ?”

Mas aquilo não era tudo... Não gostava de ver o filho sozinho no riacho. Tinha barranca, correnteza, precipício... Meu Deus! Ela suspirou, enxugou os olhos com as costas da mão e se benzeu. Depois entrou para cuidar do almoço.

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Nessa manhã, enquanto deixava os animais pastarem o capim novo o rapaz percebeu, no alto dos jatobás, os dois pássaros. Uma espécie desconhecida, de canto melodioso e belas cores. Não deviam estar ali há muito tempo, pois só agora os via. Ou seria perturbação do seu cérebro? Será que os pensamentos estavam tão distantes assim, a ponto de não perceber pássaros tão exóticos?

Devia ser mesmo, pois ultimamente se pegava muito desatento ao pastoreio, tanto que, às vezes, nem percebia quando uma ou outra res se afastava do rebanho, investindo-se no mato. Era uma área de vegetação fechada, com terreno escorregadio, irregular, difícil de entrar, de pegar bicho desgarrado. Porém as divagações o alucinavam, sobrepondo-se à obrigação do cuidado e da vigília.

Aqueles pássaros começaram a despertar sua atenção, dando-lhe um certo alívio às suas aflições. O colorido das penas impressionavam, as nuances de laranjas e vermelhos causavam grandes contrastes com o verde das folhas, e o canto se sobressaía, quase a silenciar as outras aves.

Mas, sendo a beleza, não uma essência em si, e mais um fruto da admiração, e sabendo-se que ela perdura pelo tempo que permanecer o encanto, passado aquele estado de surpresa e entusiasmo, outra coisa o intrigou: o comportamento.

Augusto percebeu que apenas o primeiro pássaro cantava, e estava sempre se movendo entre os galhos. E também abria as asas, voava, desaparecia no mato, e passado algum momento voltava, trazendo no bico um inseto, uma larva. Já o segundo, piava, e somente de espaço a espaço, e quase nunca se movia, quando muito o fazia para bicar algum besouro que voava próximo.

O pássaro sumiu no mato e levou consigo o pensamento de Augusto. Sobrevoou a Vila, a praça, entrou na tenda do vidente que o olhou com expressão assustadora e lhe garantiu que sua vida não estava alinhada com a ordem cósmica e que, por isso, ele não podia lutar. A confissão repetiu-se, ecoou em seu cérebro, em seu peito, no fadário miserável da existência de um infeliz camponês.

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As folhas se agitaram com o sopro repentino do vento, uma voz segredou no seu ouvido: “ Aquela moça não presta para você! “ “ Mulher, afasta teu filho! ‘’ “ O destino não é uma verdade absolula! Depende das nossas decisões, decisões, decisões...’’

Ele caminhou margeando a água. Mais adiante, abaixo, o terreno era escorregadio, irregular. Ali a correnteza ganhava força, velocidade, e se tornava barulhenta, elevando o véu da água que sumia no precipício.

Augusto aproximou-se, olhou para baixo, fechou os olhos, respirou...

Joana passara a ser um desejo distante, uma sombra que não se alcança.

Adiantaria desejá-la tão somente? “ Melhor desistir...’’, disse para si.

E fez um pequeno movimento para frente... Então ergueu um pé e seu corpo inclinou-se para abraçar o véu, o vão, o nada...

E foi nesse instante que ele ouviu um som... Um canto, um anjo... Era o pássaro do jatobá...

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Tanta tristeza abateu-lhe o espírito e o corpo, e ele adoeceu. Atormentado pelas lembranças que retiniam em seu cérebro, rejeitava comida e até o sol que entrava pela janela do quarto.

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Para não perturbá-lo ainda mais o pai prometeu levar os animais todas as manhãs ao riacho, pelo tempo que durasse a doença. No dia em que levantou-se a mãe comprovou que estava realmente recuperado porque comeu, de uma vez, ao jantar, o que resistiu por toda a semana. Nessa noite, durante a refeição, o pai contou que tinha visto um pássaro de rara beleza num dos Jatobás do riacho.

Mas o rapaz interveio:

- São dois, pai. O segundo fica sempre na outra árvore.

Entretanto, o pai, rude, protestou, censurando a afirmação do filho:

- Está duvidando de mim?

- Não, senhor – disse obediente.

Mas aquela afirmação intrigou o rapaz, que passou a noite se perguntando:

"Será que ele está mesmo com a razão, que agora há somente uma ave? O que terá acontecido? Será que foi a que voava e voltava? Se foi, então deve ter sido capturada... ou abatida... Mas quem seria capaz de abater ave tão bonita? Ou terá sido o outra, afinal de contas ela quase nem se movia... Devia estar doente, e de repente morreu..."

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Com o espírito ainda descompensado pelas impressões recentes de que Joana seria enviada para longe da Vila ou que ele poderia ser emboscado a mando do seu pai, e pela ansiedade de querer que o tempo apressasse o amanhecer, passou a noite se revirando na cama. Quando o galo cantou pela primeira vez ele se levantou e conduziu as reses ao riacho. E não precisou se aproximar dos jatobás para ter a grata surpresa de que os dois pássaros estavam lá, nos mesmos galhos, nas mesmas árvores e fazendo as mesmas coisas.

Então ele ficou revirando os pensamentos em busca de um sentido lógico para explicar o que levou seu pai a permanecer por tanto tempo naquele capinzal e ignorar a existência de um dos pássaros.

E de tanto se perguntar, houve um momento em que Augusto sentiu um fulgor percorrer sua alma, e ele sorriu, e ele agradeceu aos céus, e ele pulou de contentamento. E subitamente toda aquela angústia, todo o desgosto e o pesar sumiram do seu coração.

E ele gritou, peripatético:

“Foi isso, a sua beleza e o seu canto não foram suficientes para ele ser visto! Aquele pássaro apenas existia, e existir é passar despercebido pela vida."

O que estava predestinado a crescer também estaria propenso a ruir, caso não houvesse força, vida, movimento. O primeiro pássaro era Joana, decidida, otimista, combatente. Ele era o outro, inerte, fraco, medroso.

Num recanto da margem, onde a água permanecia calma e serena, ele curvou o corpo para beber. Seu rosto se refletiu no espelho, mostrando um Augusto envergonhado pela insegurança, impotência, por ter fugido de si mesmo e por não ter criado a oportunidade de sair e lutar... “ E quão tolo é você, Augusto, que não sabe que não há conquista sem luta, e mesmo havendo, onde estará sua graça e sabor?
E concluiu:

“Maldito camponês... Mostra tua vontade, tua determinação!!! E jura, pelo Sagrado, que isso não vai novamente acontecer!”


Célio Furtado é artista plástico e cronista

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