O tio velho, 97 anos, está resistindo sem muita queixa ou como Deus é servido, na rua da ponte, em Alagoa Grande. Ouve melhor do que o sobrinho.
— E essa peste, tio, como vai por aí?
— Não dou notícia — pude ouvir. Também não saio de casa há muito tempo. A porta aberta por causa do calor... Se ela quiser entrar, a vontade é dela, mas a de Deus é maior.
A menina que vive por lá pega o telefone: “Ele tá bem, Seu Luiz, só meio impossível e vendo pouco.”
Era meio gago no tempo de rapazote. Eu, menino, reparava, quando ele aparecia lá em casa, sempre demorando pasmado diante do relógio de parede, como se ouvisse algum toque a mais além das pancadas sonoras que os demais ouviam.
Foi-se o relógio, ou melhor, foram-se o relógio, a casa, os moradores, as velhas fruteiras ao redor, menos aquela pousada serena de tio Manuel, um dos mais moços da filharada de meu avô Chico Avelino.
Mas ficou por aí a sua queda para o serviço maneiro, para o gozo da contemplação. O pai morrera cedo, pouco depois de retornar infectado e enlouquecido, presa da servidão dos seringais amazonenses, tão bem descritos por Ferreira de Castro, que a antologia portuguesa do antigo Fename esqueceu.
E cada um dos filhos saiu por si, que a nesga de terra da família não dava para todos. E o tio, ao lado do irmão Moisés, foi se plantando em Alagoa Grande, só Deus sabe como, ora para a usina e um pouco para si mesmo numas poucas braças de terra no fundo de casa. Coisa pequena, esbarrando no pé da serra que, lá no pico, ostenta o cruzeiro de um congresso eucarístico que só minha mãe, D. Antonina, fazia referência.
Às vezes, para não me limitar a Alagoa Grande, ligo para o Rio, São Paulo, onde a família se espalha desde a ida com sucesso de tia Vila para a Cruz Vermelha do Rio. Primos que perdi a conta, nenhum no Leblon ou nos Jardins, o que é bom para não perderem o amor pelas raízes. Ainda ontem, a pretexto de saber de tio Manuel, liguei para a prima de Nilópolis, mensageira da avelinada fora da Paraíba:
— Oi, Rita
— Oi, Luiz.
Tal como tio Manuel parado diante do relógio de oitenta anos atrás, fico besta com o tom de voz de Rita de Cássia, a mesma voz bem soante e macia de tia Vila, de tia Maria, de tia Anita, de todas as tias que Chico Avelino e a sua índia Bultrim, a vó Pastora, puderam fazer, sem escolher hora, noite ou dia frio do Riachão que a barragem do Camará esvaziou.
— Ligue pra papai! – ralhou ela.
Deu-me vontade de dizer, sem maldade, pois já não temos idade para isso: “Mas ele não tem a tua voz”.
Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL