Prefaciado pelo professor e crítico de Literatura, José Mário Branco, os contos de Hélder Moura (Inventário das pequenas coisas) já vêm iluminados pela leitura que indica os traços fundadores da nova espécie narrativa a que se dedica o autor de “O incrível testamento de Dom Agápito”.
Articulando o escritor literário ao território da crônica política, que foi para Helder uma longa experiência e valiosa aprendizagem, o prefaciador ressalta a ironia como recurso estilístico e ideológico utilizado para desnudar os personagens e deixá-los expostos, pela hipocrisia de seus jogos e máscaras, ao riso que castiga os costumes.
Foi assim, no romance de estreia, e fica evidente o refinamento do humor na tessitura de algumas histórias desse novenário. Nos desdobramentos desse humor, um processo retórico-estilístico estruturante dos contos “A noite de terça-feira", “A graça de ser escritor" e até mesmo do "Relato de um trágico", que nos faz lembrar a concepção poética de Augusto dos Anjos e entender o riso como expressão da dor estética.
É um inventário rico, este de Helder, na multiplicidade de elementos que convergem para a qualidade da teia narrativa na qual se enreda o leitor e ainda se deixa capturar outras vezes para conferir conclusões, rendido ao espanto ou ao encanto de novas descobertas.
Desde o título, já se anuncia o apelo simbólico destas narrativas. Inventário de invenções, um desafiador jogo de sentidos que se entrelaçam e se repelem na arquitetura de novas conotações.
A escolha do número de contos também precisa ser considerada na leitura deste livro. Porque não é aleatória. Nove novenas constituem a matéria do inventário. A expressão literária elevada à dimensão do sagrado pela repetição do mesmo credo e pela permanência da mesma expectativa de milagre. O milagre da criação. É o que se vai revelando a cada narrativa, a partir do motivo aparentemente mais simples: um nome, um aspecto, uma pedra, um acaso, etc.
São as pequenas coisas que se agigantam no imaginário e na expressão do contista, para o enfoque dos temas que se desenvolvem, tal como sintetizou poeticamente o confrade José Mário, “em melodias agônicas e melancólicas solfejadas por seres falhos em sua insuperável desarmonia com o mundo em que estão inseridos.”
Helder se revela um mestre na escolha do ponto de vista e na forma de narrar. Por isso seus personagens são tão fortes, ganham vida própria. Quem poderá esquecer de Ziró e de sua mãe?
Penso que a maior realização do narrador é a afirmação do personagem como individualidade única. Já escrevi sobre isso. Basta pensar no D. Quixote para saber quanto vale um personagem de papel e tinta. Diante do monumento que o representa, em Madri, pude sentir intensamente e me comover com a soberania que se impõe a qualquer figura da História. O absoluto poder do imaginário, sobre o real concreto e objetivo.
Cada una dessas nove novenas coloca para o leitor um desafio esfíngico. É para a decifração do código simbólico que nos conduz todo o percurso retórico-estilístico.
Confesso que, depois de ler "A graça de ser escritor”, eu já perdi a conta de quantos Honórios identifiquei pelos caminhos. Assim se afirma a força simbólica do personagem e a capacidade do autor.
Parabéns, Hélder. Foi uma estreia de mestre!
Ângela Bezerra de Castro é professora, crítica literária e membro da APL