Minha primeira rua, numa cidade brejeira de interior, apesar dos longos anos de vivência e surpresas ante outras cidades, continua sendo me...

Anaísa e o obelisco

ambiente de leitura carlos romero gonzaga rodrigues alagoa nova obelisco alecy mendonca porta e janela olhar de menino rua

Minha primeira rua, numa cidade brejeira de interior, apesar dos longos anos de vivência e surpresas ante outras cidades, continua sendo mesmo a primeira de minha experiência urbana. Nenhuma outra, por mais arraigada à existência, me infundiu maior admiração e gosto de viver nela. Não abria para nenhum cenário especial como Areia, cercada de montanhas; as casas, uma pegada com a outra, em nada se distinguiam, salvo a que hospedava o juiz, única com jardins laterais de papoulas multicores fechando o ângulo que se abria para dar lugar ao obelisco erguido no terreno de chão batido chamado de praça. Era a praça do monumento.

...ambiente de leitura carlos romero gonzaga rodrigues alagoa nova obelisco alecy mendonca porta e janela olhar de menino rua
Criado preso, vendo a rua sem passar da porta de casa, o monumento se interpunha no cotidiano externo do meu mirante. Era um obelisco de quatro a cinco metros de altura, a base deixando um banco circular onde a molecada se enturmava. Ficava a uns tantos metros da minha vontade de estar lá, preso à meia porta para não me botarem a perder, pois, a gosto de minha mãe, eu ia ser padre.

E levei esse tanto de vida resumido à espera de ver passar. Passar Seu Lindolfo para o sítio, um homem com quem papai não falava; passar seu Joca Leite se assoando, sempre se assoando na manga suja do paletó; passar o juiz, o dr. Lapércio, saindo de casa para o cartório; passarem Clarice, Mida, Beatriz, Alice, Cleide, Aracy, fitas diárias, de manhã e de tarde, no meu mirante. A porta sem se abrir, pois papai tinha fechado as outras duas de uma folha só com a mudança do armazém de meu apelido de menino, o Luiz da Farinha.

Eu via, só via, não me mostrando além da cabeça a espiar de queixo premido no alto da meia porta. Algumas vezes a ventania me ajudava e as saias mais largas vinham mais acima ao alcance dos meus secos olhos ansiosos. Que vento bom, meus Jesus!

ambiente de leitura carlos romero gonzaga rodrigues alagoa nova obelisco alecy mendonca porta e janela olhar de menino rua

E o primeiro beijo, não meu, mas de Bibiu, na boca de Clenilde. Na boca, que até ali eu não sabia fosse para outro gozo. E descobri, numa das passagens, que, a cinco ou seis casas antes da minha, a moça de seu Lindolfo também não passava da janela. Não ia ser freira, mas era a lei de seu Lindolfo. Nessa passagem ouvi meu nome. “Você vai para o seminário?” / “Vou, terminei o admissão e preparam as roupas para isso”.

E enquanto não fui e deixei de ir, plantamos a mais pura das amizades. Ela do lado de dentro, eu do lado de fora, ela bem mais instruída, sacudindo os longos cabelos cor de mel a cada coisa que dizia. Entre essas coisas, não esqueço de duas, dentro do mesmo tema: a sua explicação sobre obeliscos, origem e significado e, a propósito, o que achava do juiz e da suma importância que ele mesmo se dava com aquela pose: “O doutor aí só perde para o monumento” - definiu e definiu-se.

ambiente de leitura carlos romero gonzaga rodrigues alagoa nova obelisco alecy mendonca porta e janela olhar de menino rua
Ali atrás da janela assentava-se um modo de ver que não precisou muito para ser a esposa e mãe Anaísa das muitas que o Brasil precisa para não ser o país que vemos, mal educado, desigual, desrespeitoso, sem exemplo ao menos em sua sala principal, que é a do governante.

Comecei a semana sabendo por Alecy Mendonça, parenta sua e nossa conterrânea, que Anaísa “partira para o plano superior” ou, de certa forma, para onde já se encontrava. Foi além do monumento, do obelisco que distinguia a paisagem cultural de nossa terra, destruído para nada, há alguns anos.


Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também