Quase ninguém reparou no coletor de resíduos. Ia à frente do carro, puxando-o, cansado, aspirando o parco ar da manhã tórrida. Súbito parou, vi bem. O carro encostado à sombra de uma árvore. À beira do meio-fio percebeu um embrulho. O que conseguira coletar, desde torneiras, aparelhos sanitários, papelão, até um boneco inflável, iria ser levado a postos de dilapidados objetos. Era de que ele vivia. Nesta fase de desemprego, pessoas sem saída têm, como única vertente, vender restos de utilidades. Questão de sobrevivência.
Imagino que mora em vivenda simples, possui mobília e eletrodomésticos doados. A simplicidade dele é comovente: usa camisa de um time que não pude identificar (sou meio leigo no assunto futebol), com o número 10 estampado às costas. Esta é a nota que lhe dou.
É comovente sua perseverança diante das dificuldades da vida ou de viver, ao invés de cruzar limites perigosos. Lavado em suor, arfante, puxando as quinquilharias para conseguir amealhar uns trocados, o mínimo para comprar o pão da família.
Quem escreve gosta de penetrar na intimidade imaginosa da vida de quem lhe toca a rabiscar. Fora ele um menino de rua ou na rua? Não sei. A infância do povo desprovido do minúsculo poder aquisitivo faz enxotar as crias para uma mão estendida na Lagoa, noutros parques, noutras vias. Se o foi e se libertou, 10 é nota pequena.
Sim, e o embrulho à beira do meio-fio? Hesitava em se aproximar do objeto. Algum animalzinho? Um explosivo? Ele temia deparar-se com alguma “pegadinha” imaginada por mau caráter perambulando por noites apagadas. Enfim, poderia, ao contrário, conter cédulas... ou uma garrafa de cerveja. Tudo ele deve haver pensado.
Vi-o desembrulhando o misterioso pacote. Sentiu mexer-se algo. Apressou-se. Era uma criança. Ele se ajoelhou. Emocionado. Estava viva. Olhou para um circunstante que passava apressado: Onde fica uma UPA próxima? O homem apontou, sem ligar para o divino achado. O coletor largou tudo e saiu apressado. Não sei se conseguiu salvar a vida da criança, mas sorria e chorava a igual tempo, levando-a acolhida nos braços suados. O maior tesouro da terra.
José Leite Guerra é bacharel em direito, poeta e cronista