Sempre que vejo a placa de sinalização do trânsito que indica animal na pista, cujo ícone é uma vaca, eu faço uma brincadeira, dizendo que o Bósforo é aqui. Refiro-me, claro, ao estreito de Bósforo, que separa a Europa da Ásia Menor, como os antigos chamavam a atual Turquia.
A relação entre o Bósforo e a vaca começa a ser explicada pelo poeta Ovídio, nesta obra monumental que se chama Metamorfoses. No Livro I (versos 567-728), o poeta latino nos fala do mito da jovem Io, amada por Júpiter e que despertou a ira da deusa Juno. Júpiter para preservá-la, transformou-a em uma novilha e colocou-a em meio a um rebanho. Juno, temendo a fuga de sua rival, deixou Argos vigiando-a.
Argos era o vigia por excelência, pois, tendo 100 olhos, ele nunca dormia por completo, alternando-os de dois em dois: dois dormindo e 98 despertos!
Mercúrio, o mensageiro de Júpiter e deus dos descaminhos e das conversas tortuosas, consegue adormecer completamente Argos, contando-lhe a história da origem da sírinx, a flauta de Pã, e mata-o, permitindo a fuga de Io. Condoída, a deusa mãe recolhe os olhos de Argos e com eles enche a cauda do pavão, sua ave preferida, como se [os olhos] fossem gemas estreladas (gemmis caudam stellantibus inplet, verso 722).
Juno persegue Io, lançando contra ela uma das Erínias, as deusas infernais, para aguilhoar seu peito sem parar. Na tentativa de escapar ao castigo, aterrorizada, Io põe-se a errar por todo o mundo conhecido de então (profugam per totum terruit orbem, verso 727) até chegar ao Egito, onde o divino Nilo a acolhe por ser ela filha do não menos divino rio Ínaco. A narrativa de Ovídio fica por aí. Mas o poeta romano constrói esse mito a partir do que ele conheceu do mundo grego, sobretudo do mito de Prometeu, presente na conhecida tragédia de Ésquilo (525-456 a. C.).
O nome PROMETEU vem da preposição grega "pro", com o sentido de antecipação, e do verbo grego "mantánō", cujo significado é conhecer, ter ciência, inclusive de fatos futuros; daí vem “mancia”, de cartomancia e quiromancia.É na tragédia "Prometeu acorrentado" que vamos ver o detalhe da jornada feita por Io, quando Prometeu*, por saber dos fatos antecipadamente, anuncia-lhe toda a viagem que ela fará até chegar ao Egito, onde dará à luz Épafo, o mais antigo dos ancestrais de Hércules, futuro libertador do titã aprisionado por Júpiter (versos 700-876). Nesse exato momento, Io se encontra na Cítia, região longínqua da Eurásia, localizada entre o norte do Mar Negro ou do Mar Cáspio, em uma de suas montanhas escarpadas, onde o herói se encontra acorrentado.
Antecipando o percurso que Io fará até chegar ao Egito, Prometeu comunica-lhe que ela deixará a Europa e atingirá o solo da Ásia, depois que, de um salto, ultrapassar o canal que separa os dois continentes (e também divide o Mar Negro - ou Ponto Euxino - do Mar de Mármara). Daí por diante, para a sua glória, os homens batizarão o estreito com o nome de Bósforo (versos 729-735).
Bósforo é um termo grego, composto pelas palavras "boũs" (boi ou vaca) e "póros" (passagem), que significa, portanto, “Passagem da Vaca”.
Vítima do amor de Júpiter (Zeus, na mitologia grega), que teve o propósito de criar o maior herói grego (Hércules, nascido 13 gerações após Épafo), a jovem Io se imortaliza na poesia e na permanência de seu sofrido périplo para escapar à ira da ciumenta deusa Juno. Um sinal de que que os deuses também escrevem certo por linhas tortas.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL