O estado é seu sócio. Sócio-penetra, que se convidou, se impôs e não tem como você colocá-lo para fora. O Estado entra com nada e abocanha uma parte considerável do que você produz, com a promessa de devolver o que tomou em bens sociais. No mais das vezes, as promessas ficam pelo meio do caminho, pois o Estado acredita e aposta na nossa inércia e resignação. Acredita, ainda mais, no poder das palavras vazias de ação.
Todo mês, o estado fica com quase um terço dos proventos e salários dos trabalhadores, o que significa que labutam cerca de quatro meses só para pagar a este sócio, sem que ele cumpra a sua parte, aplicando esse dinheiro em saneamento, saúde e educação básica universal, pelo menos.
Essa mordida forte é o que se convencionou chamar “a parte do leão”, numa associação icônica do felino com o Imposto de Renda. Associação, diga-se de passagem, injusta, porque o rei das savanas – leão só vive em selva nos filmes de Tarzan – está submetido às leis instituídas pela seleção natural das espécies e, estando no topo da cadeia alimentar, ele toma o que lhe é conveniente, porém nunca mais do que lhe é devido. Os animais, agindo por instinto, parecem mais justos do que o Estado, que age por cálculo e nos escorcha. A vida em sociedade tem como princípio nos proteger contra as leis naturais e contra nós mesmos, contendo e amenizando o poder do mais forte contra o mais fraco. Pelo menos em tese... O Estado, no entanto, não parece conhecer essa parte do contrato.
Mesmo que seja um estereótipo fazer do leão um ícone do Imposto de Renda, esse modelo inflexível – tradução literal para estereótipo – não é aleatório ou arbitrário. Há sempre uma razão para a existência do estereótipo. A razão pode estar na fábula V, do Livro de Fedro, o liberto de Augusto, que usava esse gênero narrativo, em versos senários iâmbicos, para criticar, de modo alegórico, os vícios de nós humanos.
Apresentaremos, inicialmente o texto latino e, em seguida, uma tradução nossa em versos heptassílabos duplos.
Vacca et Capella, Ovis et Leo
Nūmquăm ēst fĭdēlīs cūm pŏtēntī sŏcĭĕtās.
Tēstātŭr hǣc fābēllă prōpŏsĭtūm mĕŭm.
Vāccă ēt căpēllă ēt pătĭēns ŏvĭs īniūrĭǣ
sŏcĭī fŭērĕ cūm lĕōnĕ īn sāltĭbŭs.
Hī cūm cēpīssēnt cērvūm vāstī cōrpŏrĭs, 5
sīc ēst lŏcūtūs pārtĭbūs fāctīs lĕō:
'Ĕgŏ prīmām tōllō nōmĭnōr quĭă rēx mĕă ēst;
sĕcūndām, quĭă sūm sŏcĭūs, trĭbŭētīs mĭhī;
tūm, quĭă plūs vălĕō, mē sĕquētūr tērtĭă;
mălō ādfĭcĭētūr sīquīs quārtām tētĭgĕrĭt'. 10
Sīc tōtām prǣdām sōlă īmprŏbĭtās ābstŭlĭt.
Nūmquăm ēst fĭdēlīs cūm pŏtēntī sŏcĭĕtās.
Tēstātŭr hǣc fābēllă prōpŏsĭtūm mĕŭm.
Vāccă ēt căpēllă ēt pătĭēns ŏvĭs īniūrĭǣ
sŏcĭī fŭērĕ cūm lĕōnĕ īn sāltĭbŭs.
Hī cūm cēpīssēnt cērvūm vāstī cōrpŏrĭs, 5
sīc ēst lŏcūtūs pārtĭbūs fāctīs lĕō:
'Ĕgŏ prīmām tōllō nōmĭnōr quĭă rēx mĕă ēst;
sĕcūndām, quĭă sūm sŏcĭūs, trĭbŭētīs mĭhī;
tūm, quĭă plūs vălĕō, mē sĕquētūr tērtĭă;
mălō ādfĭcĭētūr sīquīs quārtām tētĭgĕrĭt'. 10
Sīc tōtām prǣdām sōlă īmprŏbĭtās ābstŭlĭt.
A vaca e a cabra, a ovelha e o leão
Fazer sócio o poderoso nunca é de confiança.
Esta historieta atesta o que venho de expor.
Vaca, cabra e ovelha, que suporta a injustiça,
foram sócias com o leão nas pastagens das montanhas.
Como houvessem apanhado certo cervo corpulento, 5
ao fazerem o cervo em partes, o leão assim falou:
“A primeira parte eu levo, porque sou chamado rei;
a segunda, como sócio, a mim atribuireis;
como sou mais poderoso, a terceira irá comigo;
com o mal será punido quem tiver tocado a quarta”. 10
A improbidade, assim, toda a presa abocanhou.
Fazer sócio o poderoso nunca é de confiança.
Esta historieta atesta o que venho de expor.
Vaca, cabra e ovelha, que suporta a injustiça,
foram sócias com o leão nas pastagens das montanhas.
Como houvessem apanhado certo cervo corpulento, 5
ao fazerem o cervo em partes, o leão assim falou:
“A primeira parte eu levo, porque sou chamado rei;
a segunda, como sócio, a mim atribuireis;
como sou mais poderoso, a terceira irá comigo;
com o mal será punido quem tiver tocado a quarta”. 10
A improbidade, assim, toda a presa abocanhou.
O Estado nem sempre é um inimigo, como podemos ver em sociedades adiantadas, que retribuem à população o que arrecadaram com os impostos. A questão é o Estado ter-se tornado nosso inimigo, quando a sua ação não vai além da improbidade administrativa, distribuindo benesses e privilégios com os seus apaniguados. O passado, como atesta a fábula de Fedro, sempre tem uma lição para nos ensinar. Nós é que resistimos a aprendê-la.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL