Para os filósofos franceses Félix Guattari e Gilles Deleuze, há um devenir impopular no enredo do livro Ratman’s Notebooks (bestseller de 1968) escrito por Stephen Gilbert, e que é base para o filme Willard (1971). Esse filme, que só conheci pela indicação dos filósofos constante no livro ‘MIL PLATÔS, Capitalismo e Esquizofrenia’, é dirigido por Daniel Mann, e tem no papel principal o ator norte-americano Bruce Davison, quando ainda tinha um quarto de século de vida.
Segundo as vagas memórias dos autores-filósofos, compartilhadas no início do quarto volume de seu denso livro, – que tem Ana Lúcia de Oliveira como coordenadora da tradução para o português, pela primeira edição de 1997 – há heróis no enredo, e são camundongos! Ora, a impopularidade estaria em parte pela qualidade duvidosa do filme, “um série B, talvez”, como lembram – que aliás ganhou uma sequência, Ben (em 1972), e uma espécie de releitura dos enredos anteriores e do livro original, um remake expandido, em 2003. Noutra parte, essa impopularidade, percebida pelos pensadores europeus, advém do asco que os ratos (e as possíveis mazelas que eles carregam) provocam no homem. Mas, paradoxalmente às impressões de Deleuze e Guattari, tanto o livro quanto os filmes que dele derivam gozaram de sucesso notável de vendas e bilheteria. Aliás, os próprios autores, conheceram o filme, no cinema, já na primeira metade da década de 1970.
Uma força inegável que realça e reinterpreta a narrativa do livro – e que pode explicar, em parte, essa “impopularidade popular” – é a música trilhada nos filmes. Na primeira montagem, adaptação para o cinema logo três anos após o lançamento do livro, temos a música de Alex North (1910-1991) que, desde a abertura do filme, com créditos e cena inicial passando-se numa siderúrgica – homens fundindo ferro e aço, operários em meio a faíscas de combustão cintilando bem à frente da câmera, dando bastante movimento – sob uma pujante música orquestral (regida pelo próprio compositor) com um apelo melódico nas cordas com arco, leve e contrastante ao ambiente metalúrgico.
A música tem o primeiro corte justamente quando o carro do anti-herói, por assim dizer, o chefe da empresa, sa vci da fábrica e assusta Willard freando bruscamente quase que em cima dele. Essa sincronia de eventos da música que prepara, antecipa, refere, e alude a afetos e emoções é recurso não só do mundo cinematográfico, mas, advém de muito antes, já das obras incidentais e cerimoniais de tempos imemoriais.
North, para fazer um trocadilho com seu próprio nome, dá um “norte” à trama do filme que, apesar de estar rotulado no gênero terror, suaviza-se e ganha mais envolvimento com uma música criativa e interessante. Aos ratos, que saem da condição de intrusos num casarão tradicional norte-americano, passando a verdadeiros donos, ao fim do filme, são associados efeitos sonoro-temáticos próprios, de ritmo, timbres e arabescos rápidos ou gestos lentos a depender da intenção que se quis provocar no espectador.
A cena final tem Willard confrontado por Ben (o rato-chefe) como num acerto de contas. Ben vai crescendo, pouco a pouco, no filme; é nomeado pelo seu tutor Willard, e, então, sai da condição de ratazana para tornar-se personagem. É o rato maior e que lidera uma vingança contra Willard por ele ter matado por afogamento – tipo de assassinato já esboçado por ordem de sua mãe, bem antes, quando não havia enorme proliferação – grande parte da rataria. Também Willard contara com a ajuda de Ben e outros ratos para vingar-se de seu chefe, assassinando-o; mas, o personagem principal não é bom moço e, após este ataque mortal, abandona seu parceiro de crime à própria sorte. O enredo então é envolvido por música de tensão nessa espécie de luta final, mas, quando Ben vence, a câmera fecha em close-up nele, a subir os créditos finais, com música heroica e tematicamente transformada do tema de abertura que antes aludira a Willard. Trompetes, trompas e trombones em ritmos marcados, quase em marcha, sucedidos por contraponto das cordas e flautins, com tímpanos rufando: a música em si a condecorar Ben como o vitorioso.
Como dar sequência a uma pitoresca estória como esta? No ano seguinte, Ben ganha seu próprio filme, suplantando a própria ênfase do livro no personagem Willard: “quando Willard se finda, Ben emerge, e ele não está só”, diziam as campanhas publicitárias de lançamento. Aliás, caberia aqui a expressão de pergunta sobre a coragem ou bravura que Willard não teve e que se viu no ‘gabiru-herói’: és um homem ou um rato?...
Pois bem, a música nesse novo filme é da lavra de Walter Scharf e junto ao diretor Phil Karlson, têm a felicidade de embutir uma canção com referência direta a Ben. Ambos os filmes guardam algumas semelhanças no roteiro, traçando o mesmo perfil solitário do personagem humano com quem Ben se relaciona. No entanto, Danny Garrison (interpretado pelo ator Lee Montgomery) não é um rapaz como Willard, é uma personagem criança e isso nos suscita, na relação com o rato, algo lúdico e muito mais ligeiro no argumento fílmico. Essa percepção é definitivamente terna quando, à cena do choroso Danny, pensando que Ben morrera, é adicionada a canção de Scharf, com letra de Don Black, num acompanhamento singelo de violão e cordas com arco ao final, pela voz inconfundível de Michael Joseph Jackson, aos quatorze anos. A canção é tão poderosa, de uma melodia tão tocante, tão poética que certamente não duvido muitas crianças terem pedido aos seus pais, à época, para domesticarem ratos e terem um ‘Ben’ para chamarem de seu.
Seja um “devir-animal”, – numa lembrança bem desenredada dos filósofos, com conceitos demasiado densos para que os traga aqui sem esmiuçá-los – seja a análise do discurso feita pelo profícuo e inteligentíssimo teórico literário canadense Northrop Frye, que emula a relação entre ritual, como “pré-consciente e animal”, e mito, como “consciente e humano”; tanto o livro, quanto os filmes, com a imaginativa e expressiva música, têm forma para bem além dos gêneros: uma criação arquetípica que releva nossa relação íntima com o mundo dos símbolos do qual a música é parte.
E nesse ambiente arquetípico, a tradição do conto em filme com os ratos como amigos de uns e causadores de nojo em muitos outros, chega ao auge no filme de animação Ratatouille (2007) onde Rémy – que já não é um rato real como Ben, nos filmes de terror, mas, um desenho animado, suavizando ainda mais essa relação mítica de devir-animal – não só fala, como lê e cozinha como poucos humanos. A sujeira na vida de esgotos dos ratos, a relação com o homem, e os preconceitos são todos postos à prova na moral dessa estória que se encerra na crítica final de Monsieur Anton Ego: um rato jamais poderia ser artista, mas os humanos desprezados hoje, ou sem o devido reconhecimento e espaço, são como ratos que proviriam de quaisquer lugares. A música, também competente enquanto função de ambientar a trama, fica a cargo do premiado Michael Giacchino que, bem diferente do estilo de North ou Scharf, cumpre seu papel sem grandes orquestrações, e num estilo mais industrial, ou fabril, com clichês que servem bem ao espírito da animação.
Voltanto à França de Guattari e Deleuze, Giacchino compõe a canção Le Festin que encerra o filme de modo altruísta, fazendo-nos respirar fundo, arrepiar de vontade em rodopiar nessa canção em valsa no estilo tradicional das ruas da cidade-luz, com o acordeão bem característico, e na interpretação da cantora parisiense Camille Dalmais.
Camile possui um timbre escolhido a dedo, tão suficientemente leve, agudo e nasal que se pode associar a Rémy, personagem principal, na felicidade da inauguração do restaurante La Ratatouille, em que ele é a estrela.
Ratos ou homens, rituais e mitos, em todos manifesta-se esse saber, ora alquímico, ora prático e objetivo: a música envolve, ambienta, serve à narrativa ou dela se serve para imprimir e afetar por meio de intrincadas tramas de subjetividade e simbolismo. Creio que mesmo transcendente à criatividade humana, a música, posto que manifesta em som, é em nós e através de nós.
Sam Cavalcanti é mestre em música, crítico e escritor