Serafim entregava sacas de carvão nas casas. Faz tempo. Pouco ou nenhum fogão a gás nas cozinhas, as donas de casa colocavam as pedras negras, molhavam-nas com querosene, riscavam o fósforo no olho de marca, puxavam os abanos de palha entrelaçada para provocar o vento que vinha avivar as brasas. Um cheiro acre percorria todos os recantos, a fumaceira subia para as telhas de barro ou sumia pelas janelas abertas.
Serafim trabalhava numa carvoaria, cujo dono era seu Lindolfo, idoso e escondido pelo farto bigode, sempre no paletó e deixando uma gravata-borboleta pousada no colarinho duro e sujo pelo esvoaçar da poeira do carvão armazenado. Era um vão médio, onde as pilhas do precioso produto vital para o preparo da alimentação se estendia à espera dos fregueses.
Seu Lindolfo também passava bicho na pule, era conversador, considerava-se, talvez, um empresário, mantendo-se sempre naquela elegância, traçando com quem dele se aproximava um papo agradável. Se bem que enfeitasse o maracá, quando narrava ousadas e pouco prováveis aventuras das quais tomara parte. Por exemplo, fora herói da II Guerra Mundial e perdera a medalha. Pelo que se sabia nunca servira ao mais modesto quartel e nunca vira uma escopeta. Muitos acreditavam nele, menos Serafim, que ficava caladão, fumando seu boró, num tamborete, sorrindo das conversas cavilosas do patrão, mostrando os dentes apodrecidos, o corpo tomado pelo manto da sujeira acumulada.
Diziam que Serafim não tolerava banhar-se. Vaticinavam que iria morrer de sujo. Interessante: gostava de usar loção barata comprada em camelô, a fim de afugentar o mau cheiro que exalava. “Quando casa, Serafa?”. Ficava embaraçado, se enterrando de vergonha, mordiscando os lábios rachados: “Sei lá, tem uma menina que me dá bolas, mas ainda não posso assumir família. Tenho até um retrato colorido dela...”
Serafim não era tão jovem. Desde criança tinha por ofício carregar nas costas ou no carrinho as sacas encomendadas. Alegrou-se no dia em que fizera a primeira comunhão na Catedral e o padre dissera que ele tinha nome de arcanjo de corte celeste. De fato o era em vida, nunca cometera o mal. Ajudava os necessitados com amor e alegria.
Cobravam-lhe, vez em quando, a namorada. O próprio seu Lindolfo brincava com o entregador sobre o assunto. Uma das vezes, ele chegou para o patrão e, desconfiado, abriu a carteira. Mostrou-lhe uma estampa. O dono da carvoaria escondeu nas mãos o rosto com o riso de zombaria. Serafim era maluco ou ingênuo demais: a estampilha mostrava conhecida atriz internacional. Um pobre iludido.
Mas Serafim vivia sua fantasia. Não perdia um filme onde ela figurasse. Um homem limpo. Um anjo de nome e de pureza. Vi-o envelhecido, sentado à porta da carvoaria, desorientado, mas falando da namorada. Um seráfico.‘
José Leite Guerra é bacharel em direito, poeta e cronista