Seriam a agudeza de sensibilidade e o depurar da emoção estados de espírito responsáveis por fertilizar a criatividade em tempos de pandemia? A história parece indicar que sim.
Por volta da metade do século 19, em Paris, Chopin não largava a sua amiga-companheira, a baronesa Amandine Dupin, escritora que passou a usar o pseudônimo Georges Sand. Levavam uma vida boêmia pelas tavernas próximas à praça d’Orleans, frequentadas por Balzac, Delacroix, Gustave Courbet, Flaubert, Gericault e outros como Liszt, Rossini, Viardot e Turgenev. Obviamente que dessa convivfência notável só poderiam advir boas ideias e inspiração. Mas chegou o momento em que Georges Sand, movida por espírito protetor e profundamente entusiasmada pela obra do compositor polonês, anteviu que, além da fragilidade de sua saúde, Chopin precisava se isolar para criar mais. E se mudaram para Palma de Maiorca onde viveram por quase um ano.
Ainda que em condições precárias, morando numa cela alugada no mosteiro de Valldemossa, a paisagem vislumbrada do alto da encosta, a brisa e o isolamento muito inspiraram Chopin, na composição dos prelúdios, scherzos e outras jóias da literatura musical romântica, assim como Sand, em seus romances e novelas.
São vários outros registros na história, de personagens que produziram brilhantemente ao se confinar. Seja no exílio, prisão, privação da mobilidade ou por decisão própria. Casos como Isaac Newton, cujo ápice de produção científica se deu no isolamento pela peste bubônica, em Londres. Como Shakespeare, que criou algumas de suas mais famosas obras, a exemplo de Rei Lear e Macbeth, também em época de pandemia, quando todos os teatros estavam fechados. Ao perder os pais, vítimas da peste, Boccaccio fugiu de Florença para o interior do país, uma fase muito profícua de sua arte, mesmo imensamente dolorida. Edvard Munch, que foi contaminado na pandemia de H1N1 no início do século passado, é outro que criou uma de suas famosas telas, intitulada “Auto-retrato com gripe espanhola”.
Voltando ao início, teria mesmo uma força interior benéfica à criação artística, filosófica, científica, o isolamento da vida mundana? Pelo que se observa, sim. É como se na reclusão, a limitação e a visão restrita às janelas, nos aguçassem o olhar para significâncias despercebidas na rotina de antes. E que agora brilham com outro tipo de luz e cor.
Observando ontem uma ave migratória flanando pelo céu da tarde morna e cristalina, percebemos claramente a trilha espiralada que ela percorria para ganhar altitude. Mais, e mais, até singrar em nova rota pelo azul dos ares, rumo à liberdade. E que liberdade! Não possuía bagagem, “nem mesmo uma trouxinha”, como disse meu amado amigo. Não tinha nada e tinha tudo. Era livre, abençoada e protegida pela mesma Inteligência que lhe ensinou a se elevar em espiral rumo à felicidade das alturas.
E assim, ela sumiu pelo firmamento a se perder de vista. Nunca uma cena representou com tanta força a verdadeira liberdade, nem havia me tocado tanto o coração. Daí imaginar que por estarmos confinados, tolhidos no ir-e-vir, fragilizados e limitados em nosso próprio reduto, ainda que alimentados pela resignação que a sabedoria cósmica nos infunde, tornamo-nos mais sensíveis. Com o olhar mais aguçado para sinais e valores não percebidos na anterior e suposta liberdade. Uma liberdade que sequer de longe se compara à das aves que migram de céu em céu. Sem levar sequer uma “trouxinha”...
Germano Romero é arquiteto e bacharel em música