Narrei, há poucos dias, as conversas dos galos da minha vizinhança, cheias de ritmo e me dizendo coisas interessantes. Para a minha satisfação, o Dr. Adhailton Lacet Porto, Juiz de Direito, leu o meu texto e me informou que havia julgado um processo em que uma moça se queixava da vizinha, cujo galo cantava cedinho.

Para entendermos isto, vamos ao mito grego do galo. Homero, no Canto VIII da Odisseia (versos 266-366) narra os amores adúlteros de Afrodite e Ares, na cama de Hefestos, o deus-faber, casado com a deusa do amor e da beleza.
Ovídio, nas suas Metamorfoses, Livro IV (versos 169-189), narra igualmente esse episódio jocoso, que faz todo o Olimpo rir – “um riso inextinguível elevou-se entre os deuses bem-aventurados”, diz Homero (verso 326).
O motivo do riso é que o Sol, o deus que vê todas as coisas antes de qualquer outra divindade – “videt hic deus omnia primus”, diz Ovídio (verso 172) –, flagrou os amantes no leito e os denunciou a Hefesto. O deus fabricante construiu uma rede de malha finíssima, porém muito resistente, para apanhar os dois traidores no ato ilícito. Foi o que aconteceu.

Onde entra o galo nessa história? O mito grego se difundiu com Homero, mas ao longo dos tempos, houve um acréscimo plausível ao enredo. Conta-se que Ares deixara um jovem de nome Alectrión vigiando os arredores e com o encargo de acordá-lo cedo, de modo a não ser flagrado por Hefestos, na cama com Afrodite. Tudo correu bem até o dia em que o jovem dormiu e o Sol surpreendeu as duas divindades ainda sonolentas, vez que foram atingidas por Hipnos, o deus do sono, depois de refesteladas com a noite de prazeres que tinham desfrutado.
Com a denúncia do Sol a Hefestos e a exposição vergonhosa dos amantes em pleno ato sexual, pois a rede invisível que os prendia não permitia que eles se mexessem, Ares transforma o jovem Alectrión em galo, com a obrigação de sempre cantar, despertando as gentes, antes de o Sol aparecer. Em grego, alectrión (alektryón) significa galo.

A moral da história é que, diz Homero, “as más ações não prosperam, o lento atinge o veloz” (verso 329). Hefesto, deus coxo, conseguiu apanhar o mais rápido dos deuses, Ares, pela má ação deste. Como uma má ação nunca atinge um só, Alectrión perde a sua condição humana e passa à condição animal, numa servitude que, se o faz realizar um bem, acordando as pessoas para a labuta diária, também o faz recordar, para sempre, a traição que encobria.
Quanto ao Sol, Afrodite o fez apaixonar-se perdida e impossivelmente pela bela Leucótoe, dando origem ao mito do solstício. Mas isso já é outra história e fica para depois.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL