Isolamento é fogo. Tem efeito agravado no transcurso dos dias. Com o corpo preso, a mente ganha asas. Ando a sonhar na brevidade de qualquer cochilo. Sonho com todos e com tudo.
Nesta madrugada, foi com Frei Damião. Melhor dizendo, foi com a história que dele contava minha avó Amélia. Que Deus a tenha.
O ano era 1945, por volta de fevereiro, quando sequer eu havia nascido. Mas sonho é sonho. É coisa que inverte o tempo e a razão. O fato é que eu me via no pátio da Igreja de Pilar, com todos os sentidos para o sermão do frade, a maior estrela das Santas Missões, gente com prestígio de santo, quando veio a notícia: “Socorro, Frei Damião. O Paraíba está de canto a canto e acaba de virar a canoa dos músicos, bem no meio”. No meu devaneio, a cena se passava exatamente como descrita pela minha avó, em carne e osso, a mim e meus irmãos, à boca das noites chuvosas, época em que o rio tomava água e se aproximava dos quintais.
A mãe da minha mãe dava tons graves a cada frase, enfatizava cada gesto. Hoje, quero acreditar que ela assim compensava um desejo frustrado: o de brilhar no cast das radionovelas.
Eu a vi chorar, diversas vezes, ao pé do antigo Philips, mexendo botões para melhor sintonia da Rádio Jornal do Commercio que transmitia do Recife a trama e as dores de “O Direito de Nascer”.
Era a fase de ouro da radiofonia e de seu maior sucesso: um dramalhão de origem cubana com texto original de Felix Caignet e adaptação de um camarada chamado Eurico Silva. A Rádio Nacional, que punha a coisa no ar desde 1951, também a exportou para emissoras de todas as regiões do País, anos seguidos.
Eu não alcançava a razão pela qual senhoras de certa idade se matavam nos afazeres das manhãs e tardes para, lenço à mão, sofrer com aquilo à noitinha. Talvez fosse por conta de Albertinho Limonta, um purgante que uma vez deixou meu pai enciumado.
Eu juro. As mulheres da minha casa tomavam para si as agressões a Maria Helena, ou Isabel Cristina, não lembro bem, mãe solteira na sociedade preconceituosa dos idos de 1950. Jacira, a ajudante da nossa cozinha, até pegou trejeitos de Mamãe Dolores, uma alma pura e posta a comer o pão que o diabo amassou, a cada capítulo. Não sei se andava tal e qual, pois rádio não tem imagem, mas passou a falar do mesmo modo.
Perdão, Frei Damião, acabei esquecendo de você. Pois bem, os músicos da tal canoa vinham de Serrinha, o distrito de Pilar que já superava a sede, a ponto de ter banda e dobrados a serviço de festas, cultos e procissões. No meio da cheia alguém, apavorado, se levantou, o que fez o pequeno barco virar.
Mas ao pedido agoniado de socorro, com a inflexão que minha avó repetia e assim eu sonhei, o frade ergueu os olhos para o Céu e, após breve silêncio, assegurou: “Não se preocupem. Ninguém morrerá”.
E, de fato, ninguém morreu. Nem Aristenes, com sua tuba gigante e seus 120 quilos de peso. Nem ele, que não sabia nadar.
Preciso informar que uma parte dessa história não entrou no meu sonho. Águas já baixas e areia aparecendo, o moleque Pereira disse que chegou ao trombone encontrado no local do afundamento, muito depois do incidente, menos pelo brilho do metal e mais em razão do som que o bicho emitia à passagem do vento pelo bocal. Mas nisso eu não recomendo a fé de ninguém. Eu, não.
Frutuoso Chaves é jornalista