Claro que não foi apenas a terra fértil, mas dois milênios de História que deram a Londres a sua grandeza. Não vimos – eu e Ione – nenhum monumento ao apóstolo das epístolas no adro da Saint Paul’s Cathedral. Em lugar dele, deparamo-nos com uma estátua da Rainha Anne, a primeira soberana do chamado Reino da Grã-Bretanha, quando Irlanda e Escócia foram anexadas à Inglaterra.
Todos sabemos que Henrique VIII rompeu com a Igreja, fundando o anglicanismo, cujo chefe espiritual é, desde então, o rei. Mas o vínculo Poder e Fé inglês vai mais longe. Em torno da estátua de Queen Anne, demos – ao vivo - com uma multidão de velhos heróis militares com os peitos sobrecarregados de medalhas, aguardando uma cerimônia de três horas pelos seus mortos e pela própria glória obtida em combates por toda parte. Quando o templo ficou livre, nós - apesar de exaustos sexagenários, vasculhamos tudo, nele, inclusive os 259 degraus até o vão imenso que se abriu ante a varanda em torno do bocal do domo de assustadores 110 metros de altura, o segundo maior do mundo. Imagens de santos no gigantesco recinto? Nenhuma. Em lugar de altares, um grande ... cemitério... de grandes guerreiros da nobreza britânica, todos em esculturas de corpo inteiro, em mármore, a começar pelo almirante Nelson, pelo Duque de Wellington e pelo general Sir Isaac Brock. Junto do altar-mor, um memorial pelos aliados americanos mortos na Segunda Grande Guerra, outro pelos ingleses abatidos na Guerra do Golfo.
Mas é claro, também, que o esplendor britânico não provém apenas da força. Lá estavam túmulos e mais túmulos de grandes artistas como Turner, Samuel Johnson, Reynolds, Millais e John Donne. Repetia-se, na catedral em que se casaram Charles e Diana, o mesmo que víramos na Westminster Abbey, a Abadia de Westminster, logo atrás do edifício do Parlamento, onde foram coroados e sepultados todos os reis ingleses. No belo gótico do edifício com seus arcobotantes e vitrais, víramos o exato e feio perfil de Elizabeth I – feito a partir de sua máscara mortuária – a grande rainha deitada, com seu espalhafatoso luxo, em cima da tumba, entre tumbas de vários outros reis que viveram antes e depois dela. E – mais adiante - lá estava o Poet’s Corner – o Recanto dos Poetas – com a estátua de Shakespeare em destaque, mais os memoriais de Chaucer, Milton, Wordsworth, Keats, Shelley, William Blake e, para minha surpresa, do americano do Missouri, naturalizado inglês, T. S. Eliot. Também lá estavam as sepulturas de Dickens, Kipling, Thomas Hardy, Sir Laurence Olivier, todos na boa companhia dos imensos Handel e Henry Purcell.
Há uma série de coisas que dão cor local a Londres: a troca da mão e contramão nas ruas, com motoristas dirigindo do lado direito dos carros e das pistas; os táxis – London cabs – agora em menor número, conservando seu modelo antigo, mas eficiente; algumas cabines telefônicas que se mantêm preservadas, tão vermelhas e onipresentes, assim como os ônibus de dois andares – the red double-decker bus; a presença poderosa dos quatro enormes leões de bronze, deitados sobre o pedestal da Coluna de Nelson, na Trafalgar Square; a multidão aplaudindo, empolgada, o inesperado som nada marcial dos Beatles irrompendo da mecânica banda militar; os próprios músicos, tocando e marchando de jaquetas vermelho-sangue, enormes pelames negros sobre as cabeças; os portões de grades negras com belos brasões rococós dourados diante do Palácio de Buckingham; o desfile da cavalaria, que parecia ter saído do Grito do Ipiranga do Pedro Américo; a tarde da sexta-feira, com muita, muita gente conversando animadamente, bebendo cerveja nas ruas, diante dos pubs lotados; o arabesco dourado emoldurando o relógio da torre em falso gótico do Big Ben; e a roda gigante – de 135 metros – The London Eye (O Olho de Londres) do outro lado do Tamisa, girando lentamente, a cidade descendo no que vamos, muito devagar, subindo dentro de uma de suas 32 cápsulas de vidro.
Marcante, também o passeio de barco no que passamos sob a velha e célebre Tower Bridge, com suas duas torres (que lembram as do Parlamento ) e Ah, o Shakespeare’s Globe! Comovi-me muito, no centro do velho teatro circular de madeira, na plateia sem poltronas, vendo a guia, exaltada, falar da emoção sem igual que se vivia ali todos os dias, no século XVII. Do que pude captar de seu inglês, ouvi:
- Pensem no que é ver de perto o ator que faz Marco Antonio descendo estes degraus do palco até vocês, que o assistem aqui, em pé, ele com o corpo ensanguentado de César nos braços e começando seu discurso, olhando direto nos seus olhos, nos meus e nos seus, e clamando: “Friends romans! Countrymen!!!”
W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta