Dos picos pedregosos desceu o avô para a vila, a fim de arrumar matrimônio. Egresso dos Pintados, os quais, sabe Deus sob que tecnologia an...

O avô

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Dos picos pedregosos desceu o avô para a vila, a fim de arrumar matrimônio. Egresso dos Pintados, os quais, sabe Deus sob que tecnologia ancestral, plantavam um bom grão de café pelas encostas íngremes da montanha, compunha um tipo exótico em meio àquela brejeirice, com seus olhos e cabelos claros.

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Era um tempo de mulheres minguadas. Achou a moçoila bordadeira, baixinha, um tanto desprovida de encantos, porém de pernas musculosas e caráter tão firme quanto os rochedos sobre cuja estreita camada de terra preta flutuava o fértil sítio de onde provinha. Sua extremada energia espiritual havia de ampará-los na lida e na vida, até mesmo num bom patrimônio, ajuntado de bocado em bocado. Era ácida, contudo, no trato cotidiano, como uma banda de limão galego.

Dessa mistura de estirpes, sobreveio a mãe. Ficou com o melhor de ambos, menos a vontade. Era água me leva, água me traz, mudando de opinião a cada momento, como o rio de Heráclito. Habitava um universo paralelo, alheia às entediantes missões domésticas, navegando no curso diáfano da semiconsciência. Mas encantou o pai, com essa juventude entontecida.

Eram, assim, apaixonados e, de tão próximos, sequer havia espaço para o único filho, que contemplava um com os olhos do outro, sem poder, de si mesmo, construir uma relação genuína com nenhum. Via o pai pela fantasia da mãe; e esta, pelo amor obcecado daquele. Comprimido nessa afinidade monolítica, edipiana, findou por internar-se, quase a pedido, no colégio da capital, de onde saía mensalmente para um fim de semana com a família na comprida casa de frontão alto, sede da fazendola onde moravam todos. E pé ante pé, como sói acontecer, o garoto se foi achegando ao avô, num contato que deslumbrava ambos, amalgamando uma amizade para lá de verdadeira.

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Naqueles idílios proustianos, as mãos ásperas e graúdas do ancião serrano tornavam-se incrivelmente macias quando, alegres, sacudiam a cabeça do menino, despenteando a carapinha enrijecida com o salitre dos banhos de açude ainda da antemanhã, os quais faziam a molecada, nua em pelo, sibilar como as varas de bambu que recobriam o balde da represa. Ali, na água dormida, quase insuportável de tão fria, temperada com o cheiro adocicado das primeiras respirações do capinzal semicoberto, mergulhado até queixo, com os pés enterrados na argila, mordiscado por um lambari, todas as sensações físicas lhe eram permitidas, todos os sonhos palpáveis, numa miríade de possibilidades em aberto. O corpo franzino ainda sem tônus muscular, embora trespassado pela sensação de fragilidade que lhe conferia a difícil relação paterna, como que se abria para novos sentires, entre vitórias-régias e baronesas, ensurdecido pelos duelos vocais dos sapos e zumbidos das abelhas, agitados ante as nuvens de angiospermas. De mais ao longe, um gasguito quero-quero pastorando o ninho e a codorniz arrulhando na ramagem eram o caleidoscópio da natureza no seu mais sensual estado, enfim. Amava o casal que lhe dera à luz, porém, era como se a amizade desinteressada e reta do avô, expressa nessa azáfama, concedesse-lhe licença para fruir, livre, do paraíso dos sentidos, preservado do cipoal de sentimentos que lhe trazia o afeto idólatra dos progenitores, que lhe roubava as forças. Sentia-se indivíduo, capaz, no seu corpo impúbere.

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A fala nasalada do velho ascendente, de uma mansidão afetuosa, o ríctus de riso permanente, os pés cambetas de dedos grossos e unhas encravadas, enfiados nas alpercatas de couro cru, ecoavam fundo na memória afetiva, transportavam-no à aldeia dos Pintados e aqueciam a varanda bucólica da propriedade, varrida à tardinha pelos ventos enregelantes que uivavam lá da alameda das aroeiras, por cujo pedregal a mula-sem-cabeça trambolhava seus cascos nas noitadas sem lua.“Vem cá, guri, senta aí e me conta as coisas da capital”, era a senha para as delicias da prosa amadurecida e consequente. Um cigarro de palha chiando com a pólvora do fósforo, o aroma inseparável do café, o ranger cadenciado da espreguiçadeira, três ou quatro moradores acocorados, pitando cada qual sua oralidade, e a conversa fluía como se fora uma conferência entre adultos, até o gerador guinchar seu último suspiro antes de arriar as forças e proporcionar à assistência a mais brilhante escuridão. E o menino citadino, de educação escorreita, sentadinho no chão, ao pé da cadeira, gargarejando as frases, desembuchava todas as novidades que havia decorado para aquele instante, entre fantasias e realidades, segurando a atenção da amável audiência e pedindo ao Santo Anjo do Senhor que a noite não acabasse nunca. “Amanhã bem cedo, depois do leite ferrado com mastruz, vamos ver se o jacaré aparece na lagoinha, tem coragem? ”. E a bocarra do réptil medonho já serrilhando as pernas miúdas, repletas de chaboques emaciados das traquinagens do dia. Mas não havia outra resposta: tinha coragem, claro! Não havia possibilidade de recusa ante uma proposta daquelas. “Vamos, sim, cedinho!”.

O leitor há de compreender, portanto, porque, passada daí uma eternidade, no crepúsculo suave em que contemplou a imagem do Crucificado aposta sobre a face serena de olhos cerrados repousando na câmara mortuária, aquele homem, em tudo bem-sucedido e vitorioso, murmurou de si para consigo uma prece de gratidão àquele outro que, apenas por existir, permitiu-lhe ser, no sentido lato da palavra.


Irenaldo Quintans é economista e escritor

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  1. Fernando Leal28/6/20 16:19

    Aprecio em seu texto a construção dos personagens que exemplifico em dois deles: “um tipo exótico em meio àquela brejeirice, com seus olhos e cabelos claros” referindo-se ao avô. E “a moçoila bordadeira, baixinha, um tanto desprovida de encantos, porém de pernas musculosas e caráter tão firme quanto os rochedos sobre cuja estreita camada de terra preta flutuava o fértil sítio de onde provinha” a que teria como esposa. E complementada com a característica de ser “ácida, contudo, no trato cotidiano, como uma banda de limão galego”.
    “Era água me leva, água me traz, mudando de opinião a cada momento, como o rio de Heráclito” nos leva tanto ao passeio pelo popular como ao erudito, evidenciado pelas intertextualidades, sendo Proust também um desses exemplos.
    A descrição de cenário é muito bem feita, levando aqueles que passaram por caminhos parecidos a reconstruí-lo em pensamentos. As conversas com o avô me fazem lembrar muito as conversas com o meu pai e o que ele relatou para os netos, que ainda hoje lembram das famosas histórias com onças e outros bichos menos ferozes.
    Por fim, o fim. Pode passar o tempo que for “aquele homem bem sucedido e vitorioso” , no meu caso, o do meu pai, por ter criado e formados sete filhos (e dizer isso com muito orgulho) me fazem também ser grato a esse pai avô que você, como o seu belo texto me faz recordar. Lembrei muito de Isabel Allende e do seu avô em A casa dos Espíritos, e da forma como foi a sua escolhida para esposa. Parabéns pela bela construção literária.

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  2. Agradecido pela profundidade e generosidade do seu comentário, dileto amigo!

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