Tenho em minhas mãos um exemplar de Les cinq livres des faits et des dits de Gargantua et Pantagruel (Os cinco livros dos feitos e ditos de Gargântua e Pantagruel), publicados originalmente entre 1532 e 1564, da autoria de François Rabelais (1494-1553), escritor renascentista, de grande importância para o reconhecimento do francês como uma língua de cultura.
Trata-se de um volume editado pela Quarto Gallimard de Paris, com 1664 páginas, 263 documentos, incluindo um prefácio de 10 páginas, um texto sobre a vida, as obras e o tempo em que Rabelais viveu (29 páginas); outro texto que trata da recepção da obra (74 páginas) e uma explicação sobre os critérios da edição que se apresenta ao público (17 páginas).
Não acaba por aí. O exemplar se compõe ainda de um dicionário de 174 páginas, abordando termos do século XVI, léxico da obra, autores, cultura, símbolos etc; de uma bibliografia sobre ela, de um índice dos autores contemporâneos de Rabelais e dos personagens da obra, finalizando com uma referência dos ilustradores, cujos trabalhos integram esse volume.
O que considero principal, deixei para o final: esta é uma edição integral bilíngue, sob a direção de Marie-Madeleine Fragonard, com a colaboração de Mathilde Bernard e de Nancy Oddo. Edição bilíngue? Francês-português? Não, uma edição francês-francês, com o texto espelhado: do lado esquerdo, está o francês renascentista, em que o livro foi escrito, com a grafia e os usos do século XVI; do lado direito, o francês atual, para tornar a leitura do texto acessível a todos, especialistas ou leitores que desejam conhecer a obra de Rabelais. Como podemos ver, é um livro que atende a expectativa do leitor comum e a do especialista, que pode utilizá-lo como instrumento de estudo e de trabalho.
O nosso leitor deverá estar se perguntando quanto custou esse livro. Pensará numa pequena fortuna, mas estará totalmente enganado. Ele me custou in loco a bagatela de 32 euros. Sim, caro leitor, 32 euros são uma bagatela dada a dimensão da obra que tenho nas mãos e as
muitas possibilidades que ela me disponibiliza. Não pensemos, no entanto, apenas na relação custo-benefício do artigo que eu tenho em mãos. Pensemos que, para os padrões franceses, 32 euros são uma quantia inferior a 32 reais, para a nossa realidade brasileira. Com um salário mínimo de 1521 euros, o livro custa para a população francesa o equivalente a 5 reais, se o critério de comparação for o nosso salário mínimo de 1045, 00 reais.
A situação se agrava para nós, brasileiros, se pensarmos que esse volume de Rabelais jamais chegará por aqui, em sua língua original ou em qualquer tradução. Caso chegue a edição francesa, ela custará uma bela soma a quem se dispuser a comprá-la. No caso de uma tradução, a soma será bem maior, porque não tem sentido editá-la, senão trilíngue – a língua francesa renascentista, a língua francesa moderna e a língua portuguesa. Será que nosso mercado editorial estaria disposto a bancar uma empreitada dessas? Duvido.
Mas pensemos ainda em outros termos. Peguemos um escritor como Machado de Assis. Façamos uma edição crítica de sua obra considerada realista – Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó, e Memorial de Aires – com todo o aparato que encontramos na de Rabelais, inclusive produzindo um exemplar bilíngue, fac-similar e espelhado com o português atualizado, sem perder o sabor do texto do século XIX, como disse Jaime Cortesão na edição da Carta de Caminha.
O primeiro problema a ser enfrentado seria o de colocar esses cinco volumes em um único exemplar. Livros volumosos parecem afastar os leitores no Brasil. Depois, deveríamos rever a edição crítica de 1997, capitaneada por Antônio Houaiss, publicada pelo Instituto Nacional do Livro, em parceria com a Civilização Brasileira. Transpostas essas dificuldades, qual seria o preço dessa obra? Quem poderia comprá-la? Até quando ela seria republicada? Vivemos numa indigência cultural tão grande que encontrar as obras capitais da literatura brasileira numa livraria se tornou tão difícil quanto encontrar uma livraria... Acabei de ler que a Saraiva fechou sua unidade da rua do Ouvidor, no centro do Rio de Janeiro. Machado e Alencar que nos perdoem.
Fico imaginando outro cenário, quando, após o pão, a primeira necessidade seja a da educação, conforme disse DantonA indigência cultural a que me referi acima reside em vários aspectos: o preço do livro, que o torna um artigo de luxo; a dificuldade de publicação contínua, quando se esgota uma edição; a precariedade das bibliotecas públicas, quando elas existem; uma condição social que torna quase impossível a uma grande parte da população adquirir livros; a falência da escola pública... e vamos parar por aí.
Fico imaginando outro cenário, quando, após o pão, a primeira necessidade seja a da educação, conforme disse Danton. Imagino como uma edição dessas sobre Machado de Assis poderia nos ajudar a ver a riqueza que ele nos apresenta em todos os aspectos – sua época, sua geografia, os percursos pelo Rio de Janeiro do império e da república, os costumes, o vocabulário etc...
Vou mais longe. Antevejo uma edição da obra de Gregório de Matos, poeta brasileiro do século XVII, com todos esses cuidados e que, entre outras coisas, passasse em revista o seu léxico. Poderíamos ter, então uma ideia da amplidão do vocabulário desse que é o primeiro poeta brasileiro, como temos do de Rabelais, o mais amplo de toda a literatura francesa, com cerca de 20.000 vocábulos.
Enquanto não nos comprometermos como povo e nação, tendo como meta uma verdadeira revolução educacional, não conseguiremos mudar nada. Resta-nos pensar no que diz um dos personagens de Rabelais, o mestre da edificação e guardião do templo, Albian Camat, sobre o aproveitamento do tempo: “Rien n’est si cher et précieux que le temps, employons-le en bonnes oeuvres” (Nada é tão caro e precioso quanto o tempo, empreguemo-lo em boas obras – Livro V, Capítulo V).
Incluamos aí as boas e grandes obras da leitura, defendendo-as como bem cultural acessível a todos.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL