E na hora sufocante a garganta seca, os dedos tornam-se insensíveis, o olhar embaça. No meio da noite, do deserto, a agonia indecifrável a remoer versos das entranhas, a vomitar palavras do estômago, desnudar-se das vestes e encarar o espelho de si, autorretrato, ser o seu próprio "Dorian Grey".
A expiação é comer-se de sentimentos, permitir-se aos próprios medos, enfrentar-se sem máscaras, deliberadamente, no exílio do quarto, longe dos vírus, enclausurado na melhor e pior companhia: o eu.
E nesse cenário relembrar os abismos libertários apresentados pelo professor Jomard Muniz de Britto, cujo salto permite novas construções, abismos-pontes, pulo por janelas evolutivas. Mesmas aberturas das aulas extraoficiais do Bar da Tapa, dos debates educativos na pracinha do Decom, do "Programa de Quarta", da filosofia do RU (Restaurante Universitário), do chão atapetado e empoeirado em cinza da Biblioteca Central e das instrutivas velhas calouradas na Sala Preta e na Capela Ecumênica. Curso paralelo com diploma de formação individual.
O lábio sedento a revelar-se em fotografias, estranhar-se em posições, cabelos e formas, mesmo encontrando-se ali. Ser e já não ser mais aquela figura transcrita e gravada na pedra de um filme de 12, 24 ou 36 poses da máquina com filmes Fuji ou Kodak, até se tornar digital. Reconhecer-se e estranhar-se igualmente preservado, feito uma pintura rupestre. Heráclito puro, relido (refeito): ninguém se banha ou se suja no mesmo rio.
É experimentar-se e provar-se em frações de Bobs, os Dylan e Marley; os Chicos, Buarque e César. O clarear na roda de samba da mineira Nunes e forrozear nos clássicos de irmãos nordestinos de todas as matizes. É vagar e até vergar a cada criação mítica alucinógena do jogo de palavras e ritmos do bruxo sertanejo Zé Ramalho.
É soltar sem paraquedas e para quedas nas letras que duram cem anos e amar nos tempos do cólera (e prazeres) através do mágico fantástico de Garcia "Gabo" Marquez. E reconhecer-se na dor insana e intensa pelas ruas da "Cidade de Pedro", Petrogrado, pelas mãos de Raskólnikov, nos tempos dos czares. Talvez clássico princípio da indicação de um charmoso, culto e condenado em ser um pouco de Jullien Sorel, em "O Vermelho e o Negro", na velha (e sempre nova) França.
Sim, é resumir-se em poucas frases que, ao término mais me desfigurarão do que o contrário. Porém, tudo é construção. E ainda assim estarei ali, camuflado, sonso, esperto, até meio leso, idiota, como um certo príncipe, talvez literário. Garrafa de cerveja, dinheiro contado, vinho barato, gosto duvidoso, até o meio gole, meio-fio, meio seco. A secura da boca é a entrega, a autoaceitação e/ou auto contestação. O eu que fui e sou e não voltarei a ser jamais... E ainda sim "la dolce vita".
Clóvis Roberto é jornalista e cronista