O estudo contínuo da obra de Augusto dos Anjos dá-me a certeza para dizer que, contrariamente ao que muitos pensam e apregoam, o autor de Eu não é o poeta da morte, mas do renascimento. A morte – “a alfândega, onde toda a vida orgânica/há de pagar um dia o último imposto” (Os Doentes) – é apenas um processo de transição a que matéria se submete e, tendo passado pelas agruras da degradação e do sofrimento, liberta o espírito para, enfim, buscar o renascimento, através de uma nova vida, em que os erros da anterior devem ser deixados para trás. Não há como negar além da morte e do sofrimento do corpo, as referências explícitas às putrescências que contaminam a matéria, seja ela humana ou social. Trata-se de um caminho que todos percorreremos – veja-se como exemplo o soneto A um Epiléptico –, exigido por uma aprendizagem lenta sobre a diferença entre o espírito e o corpo, este como uma morada efêmera, dando àquele a lição expressa pelo poeta em Gemidos de Arte:
“Mas a carne é que é humana! A alma é divina.
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!”
Dorme num leito de feridas, goza
O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,
Beija a peçonha, e não se contamina!”
O sofrimento e a degradação são aquilo que Augusto dos Anjos chama de “podridão” que “serve de Evangelho” (Monólogo de uma Sombra) e “negra eucaristia” (Os Doentes): paradoxalmente falando, é o que existe de pior em nós e no corpo social, que há de nos trazer as boas novas da graça, para que evoluamos daquele quadro de dor e de miséria físicas.
O que nos falta para isso, senão a compreensão de quem somos? É o que o soneto A Floresta nos mostra:
Em vão com o mundo da floresta privas!…
– Todas as hermenêuticas sondagens,
Ante o hieroglifo e o enigma das folhagens,
São absolutamente negativas!
Araucárias, traçando arcos de ogivas,
Bracejamentos de álamos selvagens,
Como um convite para estranhas viagens,
Tornam todas as almas pensativas!
Há uma força vencida neste mundo!
Todo o organismo florestal profundo
É dor viva, trancada num disfarce…
Vivem só, nele, os elementos broncos,
– As ambições que se fizeram troncos,
Porque nunca puderam realizar-se!
– Todas as hermenêuticas sondagens,
Ante o hieroglifo e o enigma das folhagens,
São absolutamente negativas!
Araucárias, traçando arcos de ogivas,
Bracejamentos de álamos selvagens,
Como um convite para estranhas viagens,
Tornam todas as almas pensativas!
Há uma força vencida neste mundo!
Todo o organismo florestal profundo
É dor viva, trancada num disfarce…
Vivem só, nele, os elementos broncos,
– As ambições que se fizeram troncos,
Porque nunca puderam realizar-se!
O título, após a compreensão do poema, revela-se nitidamente ambivalente, podendo ser entendido tanto denotativamente, como a floresta, corpo vegetal vivo que abriga grande variedade de espécies, quanto conotativamente, como a humanidade. Esta ambivalência serve à alegoria sobre a qual se estrutura o poema. O eu que fala no poema dirige-se a um tu, para alertá-lo de sua convivência vã com o mundo da floresta. Se não podemos identificar quem é o eu, o tu é, sem dúvida, essa humanidade, até certo ponto, comparável com a floresta real.
Dizemos até certo ponto porque, enquanto a floresta, ainda que vida selvagem, vive na comunhão dos bracejamentos e uniões de suas copas, fazendo à humanidade um convite para essa união; enquanto a floresta mostra uma floração palpitante, numa expressão inquestionável da vida, embora haja tanta diversidade entre as suas famílias e espécies – a exemplo das araucárias e dos álamos, citados no poema –, a humanidade é uma floresta que vive o isolamento, numa “dor viva, trancada num disfarce”.
Sem conseguir se compreender, porque não procura se decifrar, a humanidade é uma floresta grosseira, cuja folhagem espessa mal consegue disfarçar “os elementos broncos” que a compõem. Onde a vida deveria ser mais pulsante, pela razão com que fomos aquinhoados, reina a mais completa ausência de vida, porque o espírito não conseguiu livrar-se da sua prisão, os troncos em que nos tornamos, amputando as “ambições que nunca puderam realizar-se”. As viagens extraordinárias a que fomos convidados terminaram por ser “a transcendência que não se realiza, a luz que não chegou a ser lampejo”, como está no magnífico soneto O Lamento das Coisas.
A floresta espessa e desconhecida só será habitável, quando, decifrando os enigmas da folhagem que nos esconde, pudermos reconhecer que, diferente das florestas reais, somos uma única espécie, ansiando por abraços de congraçamento. Salve Augusto!
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL