"Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa um espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astro,, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto.”
Jorge Luis Borges, citado por Maria Esther Maciel, em 'A memória das coisas'
Jorge Luis Borges, citado por Maria Esther Maciel, em 'A memória das coisas'
Em 2002, numa viagem a São Paulo, fui visitar a exposição do artista plástico Siron Franco, na verdade, uma instalação polêmica, intitulada "Intolerância", para inaugurar o Memorial da Liberdade, local onde funcionou, na época da ditadura, o Dops. Confesso que senti uma emoção profunda ao me deparar com corpos, inteiros e fragmentados, todos bonecos vestidos como se fossem gente de verdade. Montanhas de sapatos, de calças, de pernas, braços, todos amontoados em valas, e tudo nas cores monocromáticas dos cinzas aos beges, ou verde oliva. Foi a forma que o artista encontrou, através das centenas de roupas, e do efeito que aqueles bonecos enfileirados causavam, para denunciar os tempos/corredores dos interrogatórios, das torturas e das mortes.
Recentemente, leio nos jornais sobre uma outra instalação de Song Dong – Os tempos de Mao, no MoMA –, tributo à memória de gerações que lutaram contra a pobreza que se seguiu à revolução. E o autor diz: “...quando um chinês vê esses objetos, ele não os vê apenas como coisas. Eles trazem a essência de uma época” (citado por Adriana Abujamra, de Nova York, para o Jornal Valor 14, 15, 16 de agosto, 2009). A instalação consistia de uma casa de madeira armada somente com caibros, gavetões com roupas, objetos empilhados, vidros, montinhos de coisas, bolsas, meias, vestidos, macacões, espelhos, colchões, sapatos, cadeiras, potes, caixotes. Tudo parecia um armazém de coleta de roupas para os sobreviventes de enchentes ou terremotos. A palavra sobrevivência era a questão. Sobreviver era preciso! E para isso, era preciso guardar; guardar milhares de objetos organizados meticulosamente: pedaços de sabão usado, latas vazias, relógios parados no tempo, bonecas sem perna, tubos de pasta de dente vazios. Tudo podia servir.
Fiquei a pensar no valor das nossas coisas de cada diaSong Dong, e sua mãe, Zhao Xiangyuan, e os alicerces da casa onde ela vivia, tudo resultando em um painel fascinante da história do seu país e um tributo à memória de gerações, que lutaram contra a pobreza no período que se seguiu à Revolução Comunista na China. Título da exposição: “Não Desperdice”, numa referência à palavra de ordem adotada pelos comunistas. Cada objeto continha uma estória para contar, como o simples fato de lavar roupas numa sofisticada operação doméstica. Objetos acumulados durante 50 anos; hábito que se acentuou depois que Zhao perdeu seu marido. Agarrando-se aos seus pertences, Zhao imaginava poder assegurar que, nada mais lhe seria roubado, pois seus objetos eram o seu tesouro e, segundo ela, poderiam ser úteis novamente.
O irônico é que essa instalação, ocupa agora o espaço nobre no mesmo museu que abriga peças de Andy Warhol, artista que melhor representou o consumo americano, e fez disso o seu tema central. Mais irônico ainda, essa instalação dos chineses ocuparem esse espaço justo agora, num momento histórico em que a economia americana atravessa uma crise profunda e a China se transformou numa das maiores potências econômicas do planeta.
Simultaneamente, li também nos jornais sobre uma exposição retrospectiva do pintor Irlandês Francis Bacon (1909-1992) – O estúdio na antiga cavalariça de Londres – últimos 30 anos de vida e carreira, em fotografia de Perry Ogden ( Estadão, 11/09/2009 Caderno 2, D5). A matéria é ilustrada com uma foto do estúdio caótico em que Bacon pintava. A maior parte da exposição é composta por fotografias amassadas ou rasgadas e depois recompostas. O que parece ter saído de um monturo de lixo, são registros do método de trabalho dele e meios para interpretá-lo. Depois da morte de Bacon, o estúdio foi reconstruído numa galeria de Dublin, sua cidade, e o material lá recolhido, hoje pertencente aos arquivos da Tate Gallery.
Através dessa foto, imediatamente lembrei da casa da Sra. Zhao; trilhões de papéis, pincéis, recortes, revistas empilhadas, papelão, tinhas, paredes “sujas” de tinta, cavalete, molambos, tudo empilhado, gavetas amontoadas, tudo iluminado por uma claraboia de vidro. Era como se Bacon também precisasse das suas coisas, embora não organizadas como na casa da chinesa, e também assumisse o slogan: Não Desperdice! A jornalista Tonica Chagas comenta sobre de como esse artista tão bem retratou o lado feio e animalesco da humanidade: “Como na literatura de Sartre e Camus, o corpo da obra de Bacon é o corpo de delito em que grande parte da humanidade se transformou depois da 2ª Guerra Mundial. Criaturas contorcidas e borradas, sozinhas ou com o movimento decupado em trípticos, refletem algo que ninguém quer ver no espelho”. Ao ler a matéria, e ver tantas coisas empilhadas desse artista, me dou conta de que, o estado eterno de angústia e desespero de Bacon, mesmo quando pintava flores, como disse em uma entrevista, estava tudo lá, nas coisas desarrumadas do seu ateliê, desarrumação essa que viajou através da memória das coisas, para resgatar sua arte e sua vida.
Fiquei a pensar no valor das nossas coisas de cada dia. Pensei no Budismo, que nos ensina o desapego e como esse exercício é difícil, e exatamente pelo fato de que cada coisa tem uma estória, tem sua própria existência e concretude. Pensei em uma outra exposição que li há anos atrás, de uma artista indiana, que percorria seu país com trouxas de roupas coloridas na carroceria de um caminhão, fazendo instalações itinerantes (infelizmente não achei o recorte nas minhas coisas....e nos meus amontoados tão pouco...).
Lembrei de Bispo de Rosário e do seu “Manto da Apresentação”, onde milhões de bordados com pedacinhos de lixo, compunham o espaço/tempo da sua loucura. Ainda lembrei de Peter Greenaway, e os seus “100 Objetos para Representar o Mundo”, mas especificamente o Século 20. Em Rosângela Rennó e suas fotos-memórias; nas Palavras e nas Coisas de Foucault, e mais recentemente em Georges Perec e sua Vida Modo de Usar.... E como não lembrar do escritor Jorge Luis Borges e do seu conto “Funes , o memorioso”, e toda a crítica que Borges faz ao “catálogo mental”, como sendo algo inútil, pois mesmo registrando todos os sonhos, Funes era incapaz de esquecer. E diante de tanta memória sem lapsos e dos seus “despejadouros de lixos” ou ainda desse “museu de tudo”, onde as coisas se acumulam e se anulam, tais coisas eram o seu mais puro atestado da sua própria infelicidade.
Enquanto tentava dialogar com essas três exposições, que aleatoriamente lia nas minhas tardes de domingo, mergulhei em lembranças das minhas próprias coisas. Do meu quarto, das minhas caixas, dos meus caos que não se organizam, das minhas estantes amontoadas, do cantinho do lado da cama, que cresce, cresce....de recortes e coisas.
Saí lembrando das Colchas e Retalhos das minhas sacolas; do filme “Gabeth” e todas as suas tramas; de Maria Esther Maciel e da sua preciosidade “A memória das coisas”; de Virginia Woolf e o seu conto “Solid Objects” ou “The Mark on the Wall”; e claro, do filósofo Bachelard com a sua “Imensidão Íntima”, a falar de florestas, de lagos, de desertos e do vasto mundo. Drummond? E cita ele cita Rilke: “O mundo é grande, mas em nós ele é profundo como o mar”.
E de coisas em coisas, espero que, nesses devaneios, tenha conseguido fazer o diálogo do goiano Siron Franco e seus sapatos, com os sabonetes do chinês Song Dong e sua mãe Zhao, com os troços e restos de tinta do irlandês Francis Bacon. E agorinha lembrei de um outro Francis, o Ponge, “o poeta das coisas que exigem definições, das coisas partidas, das coisas naturais, das coisas inanimadas e animadas.... que descreve o universo, os meteoros, a chuva, o fogo; encanta-se com os moluscos, ostras, caracóis. Busca a todo momento dar voz às coisas silenciosas.” (Pedro Maciel, pesquisa internet).
E fiquei me perguntando se juntar coisas seria mesmo tão inútil assim...
Ana Adelaide Peixoto Tavares é doutora em teoria da literatura, professora e escritora