Acho que, bem ou mal, o sujeito que eu sou, a percepção que tenho de tudo, a profissão que abracei decorrem do fato de que vi meu mundo pela janela do trem.
Isso, em tenra idade, nas idas e vindas até o Recife para os estudos primários, tempo em que os trens ainda cruzavam este País imenso, injusto e desigual.
Conto isso aos meus três filhos atento a cada reação. Noto em um certa dose de inveja. Em outro, alguma desconfiança. Não há quem faça o mais novo acreditar em vagão restaurante com garçons à disposição da clientela de passagem pela pequena e pobre Pilar. Do neto, com quem hoje mais falo, obtenho atenção e confiança totais. Avô não tem o pecado da mentira a olhos de sete anos.
Cinco horas de viagem, desde meu ponto de embarque em vagão daquilo que já fora a Great Western, mas já então transformada, desde 1957, na declinante Rede Ferroviária do Nordeste S/A, a “Refesa” da expressão popular simples e mais fácil.
Cinco horas que passavam num átimo para quem se entretivesse com as estaçõezinhas do percurso, com os choros e risos das chegadas e despedidas, com a venda ambulante de tudo, até de água servida em quartinhas e canecas aos passageiros da segunda classe, aqueles do fundo do comboio. Depois deles, apenas os vagões de carga.
Pois é, meu pequeno mundo já me expunha essas divisões de garçons e tabuleiros, assentos acolchoados e bancos de madeira, no exato limite dos bolsos.
E eu me perguntava: que força misteriosa é capaz de fazer meninos, a léguas de distância uns dos outros, combinarem o mesmo tipo de brincadeira? Pião e bola de gude no ir e vir das férias de junho, mas papagaios no céu de cada lugar por onde o trem passasse perto de dezembro? Tempo depois, atinei que ninguém solta papagaio com inverno.
Leio que quase não mais se põe um parafuso na malha ferroviária nacional com seus vergonhosos 30 mil quilômetros, 23 mil dos quais ainda em bitola métrica superada, imprestável às urgências modernas. Eram 37 mil no meu tempo de menino, coisa, mesmo assim, bem próxima da malha do Século 19.
Não fossem as recentes expansões dos corredores de grãos e minérios com as suas inacabadas Transnordestina, Norte-Sul e Centro-Oeste, sem serventia ao embarque de gente, a situação seria ainda mais vexatória, percebe, hoje em dia, o idoso que sou.
E ele mesmo, preso em casa nesses dias terríveis, saudoso dos velhos tempos e com ânsias de trens e trilhos nunca assim tão sentidas, se pergunta: Como perdoar este crime de Lesa Pátria?
Frutuoso Chaves é jornalista