Há quanto tempo o homem olha o céu e se guia pelos astros? A julgar pelo que diz o poeta latino Ovídio (século I a. C. - I d. C.), nas Metamorfoses (Livro I, versos 77-89), desde o momento em que Prometeu moldou os primeiros homens, misturando o sêmen divino com a terra e com as águas da chuva, fazendo-os à imagem dos deuses que governam todas as coisas. Prometeu deu-lhes um rosto voltado para o alto e ordenou-lhes ver o céu e dirigir o olhar para os astros. O homem, assim, a um só tempo, diferenciava-se dos animais, que olham para baixo, e reverenciavam os deuses, cuja morada é o céu, e os astros, criações divinas. Zeus, compadecido da desgraça em que caiu um mortal ou querendo exaltar algum por ele amado, transformou-os em constelações com que semeou a abóbada celeste, que no dizer de outro poeta, Hesíodo (Teogonia, século VIII a. C.), já teria nascido constelada.

A mitologia nos ensina. Os mitos não são apenas fábulas ou mentiras, para entretenimento ou para causar medo, diante dos castigos que os deuses poderiam nos infligir. O mito, não sendo aleatório, tem uma razão de ser e, afirmo sem medo de errar, está no nascedouro da ciência. Que o diga a peça Prometeu Acorrentado, de Ésquilo (século V a. C.), cujo personagem-título mostra que o fogo levado aos homens foi o ponto de partida para a sua independência com relação aos deuses, trazendo-lhes o saber inicial de todas as ciências. Prometeu é, portanto, um mito civilizador. O fogo é o símbolo primeiro do que se pode chamar de cultura.


A única ajuda que Calipso lhe dá, a bela ninfa que o queria para esposo e prometia-lhe a imortalidade, é como ele deve se guiar pelas estrelas para o seu retorno a Ítaca. É o que nos conta Homero (a tradução do trecho é nossa):
Alegre com o vento favorável, o divino Odisseus desfraldou as velas.
270 Em seguida, sentado, dirigiu, com o leme em linha reta,
com habilidade, e nem o sono caía sobre as suas pálpebras
olhando as Plêiades e o Boieiro, que, tarde da noite, se esconde,
e a Ursa, a que chamam com o nome de Carro,
que gira em torno de si mesma e observa Órion.
275 Só ela está privada dos banhos de Oceano:
Esta, pois, ordenou-lhe Calipso, divina entre as deusas,
percorrer o mar mantendo-a à esquerda da mão.
E por dezessete dias navegou atravessando o mar;
e no décimo oitavo dia apareceram as montanhas umbrosas
280 da terra dos Feácios, ali onde se achava muito próximo dele.
E a terra semelhava um escudo no mar brumoso.
270 Em seguida, sentado, dirigiu, com o leme em linha reta,
com habilidade, e nem o sono caía sobre as suas pálpebras
olhando as Plêiades e o Boieiro, que, tarde da noite, se esconde,
e a Ursa, a que chamam com o nome de Carro,
que gira em torno de si mesma e observa Órion.
275 Só ela está privada dos banhos de Oceano:
Esta, pois, ordenou-lhe Calipso, divina entre as deusas,
percorrer o mar mantendo-a à esquerda da mão.
E por dezessete dias navegou atravessando o mar;
e no décimo oitavo dia apareceram as montanhas umbrosas
280 da terra dos Feácios, ali onde se achava muito próximo dele.
E a terra semelhava um escudo no mar brumoso.
É esta elevação do olhar que nos dará o espírito criador, modificador e empreendedor, buscando a melhora através do saberO que nos diz este trecho, além de complementar a atividade do herói, para que possa alcançar seu objetivo, de regressar sem o acompanhamento de homens mortais ou de deuses, de acordo com a decisão de Zeus? Em primeiro lugar, podemos dizer que ele nos revela que a viagem de Odisseus só pode ter acontecido durante o verão ou pelo menos no final da primavera. Não há condições de se guiar pela Ursa e observar as Plêiades, um conglomerado da constelação de Touro, ou se guiar pela constelação de Órion, se não for durante o verão. A constelação da Ursa Maior, aqui designada pelo seu epíteto, Carro ou Carroça, localiza-se ao norte e, como uma constelação fixa, serve de orientação segura aos navegantes e viajantes. Quando criada por Zeus, a Ursa foi proibida de banhar-se no Rio Oceano, por Hera, que colocou Arcturo como “Guardião da Ursa” – esta é a tradução do nome. Arcturo é a estrela alfa do Boieiro.

Eis aí a razão para que o mito da criação do homem o caracterize com a capacidade de, tendo o rosto no topo do corpo, voltar os seus olhos para o céu e fitar os astros. É esta elevação do olhar que nos dará o espírito criador, modificador e empreendedor, buscando a melhora através do saber, que nos traz também o sabor de conhecer e desvendar o que ignoramos.
É lamentável que tantos, ainda, teimem em viver olhando para os pés. Ou para o próprio umbigo.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL