Não será numa homenagem de formato multi-seccionado, contemplando vários temas e referências numa mesma agenda, que se faria, a contento, uma abordagem mais ajustada ao perfil de intelectual e de mestra escritora de nossa Ângela Bezerra de Castro.
E não se limitaria a uma nota só, trinada por um só devedor, como agora ocorre.
Mais do que uma reunião gremial ou mesmo de um contingente expressivo de admiradores e de aprendizes, a re-leitora de A Bagaceira, com a perspicácia crítica que faltou aos que ditam o cânone dos matizes culturais, está a merecer um reconhecimento mais elaborado, mais estudado, que permita explicar o estágio privilegiado da militância crítica destes nossos dias.
Rebento ou fruto de uma nova crítica pós modernista, crítica que começou a dar os primeiros avisos e sinais nos congressos sucessivos com passagem em 1962 pela universidade, ainda em formação, da Paraíba, a presença cada vez mais influente de Ângela Bezerra de Castro, como a de Elizabeth Marinheiro, de Socorro Aragão e dos que foram se impondo, como Hildeberto Barbosa, Chico Viana, Milton Marques, Neroaldo Pontes, Sérgio de Castro Pinto, João Batista de Brito, José Mário da Silva, Expedito Ferraz, esse engajamento numa nova forma de ler e revisar, numa nova missão educadora do professorado e da própria crítica, está a pedir um esforço mais dialético de avaliação e reconhecimento, tanto pelo mérito dos seus quadros como, principalmente, pela circunstância especialíssima de denotar uma vocação da Paraíba.
Se os índices de analfabetismo e de outras misérias continuam a comprometer nossos foros históricos de civilização, não podemos negar um certo protagonismo paraibano nas artes plásticas, nos campos do pensamento e das letras projetados nacionalmente. A galeria não é pequena, como bem mostram as paredes desta Casa, a partir de Arruda Câmara com seu Areópago de ideias republicanas, de Pedro Américo, de Augusto, o único, de Pereira da Silva, de José Américo, Zé Lins, Ariano, só faltando mesmo Celso Furtado, que enfadado de tantos títulos e acolhidas internacionais resignou a um chamado unânime sob a alegação de deixar o privilégio com a cadeira de seu pai, o desembargador Mauricio Furtado.
Ângela tem em alto valor a significação desse primado da vocação da terra. Como bem viu Crispim, citado por Neroaldo: "Ângela Bezerra desencantou o escritor paraibano". E vem de Neroaldo, reitor e companheiro de cátedra nas Letras da Universidade: “A crítica literária que Ângela faz reflete a atividade estruturante de sua vida: ser professora. Mais do que isso, provém da maneira sempre respeitosa com que administrou sua sala de aula, um verdadeiro ritual que a mestra cultivava.”
Que testemunho! E de quem procede: “O respeito pelos alunos e pelos textos estudados sempre a levou a não se deixar embalar por fantasiosas teorias em moda, senão a buscar — e repito, com honestidade — o caminho adequado, o método apropriado, em suma, o modo certo de ler cada obra”.
Cursada em letras sob as cátedras de Juarez da Gama Batista, de Virginius da Gama e Mello, professores da Universidade, autores e presenças constantes no espaço privilegiado da imprensa, a nossa homenageada vai buscar o mestrado, o doutorado, numa hora em que a crítica impressionista, emocional, autárquica, estava sendo revirada por uma nova consciência, uma nova ordem na apreciação do fenômeno literário.
E encontra um novo aparato teórico, desta vez professado por Afrânio Coutinho, Eduardo Portella, Afonso Romano de Santana, Gilberto de Mendonça Teles, Nelly Novaes Coelho, em sua maioria por uma crítica estética, visando aos elementos estruturais, ou seja, à obra em si mesma, independente das circunstâncias externas ou biográficas que a condicionaram.
Uma corrente que arrepiou-me o caminho de leitor engajado da crítica social, antiga, velha do, tempo de Émile Faguet ou de um marxista como Grib, prefaciadores eméritos de Balzac.
A nota da presença externa de Ângela Bezerra na crítica literária vem de quem lhe viu triunfar, por unanimidade, no concurso da Fundação Casa de José AméricoAh! Não manguem de mim. Mas como me perdi pela vida inteira carregando o peso das setentas e tantas páginas da análise de Grib à Comédia de Balzac, análise marxista escrita em 1941, ajudando-nos a perceber que o escritor de gênio, Balzac, foi um pensador original de profunda consciência social". Eu era e ainda não deixei inteiramente de ser por uma arte não alienada ao sentimento do povo. Sentimento ou sofrimento. A crítica que Afranio Coutinho trazia dos Estados Unidos e inscrevia jesuiticamente nas areias de Copacabana, o new-criticismo me parecia uma arte pela arte.
Eu não estava só. Havia um time querendo fazer a revolução social a que não podiam faltar o espanto estampado por Portinari nos murais mais às vistas ou o traslado da injustiça braba no romance de Graciliano. Mesmo o romance intimista de Machado era arrastado lá de dentro, portas afora, pela crítica marxista de Astrogildo Pereira. Machado não era um alienado, era um sonso.
Isso me deixou com mosca na orelha quando vi as Dimensões de Portella, recém-chegado das aulas de Damaso Alonso não só na Espanha como nas escolas estrangeiras.
Já não sonho mais, a revolução de Caio Prado tinha-se se ido com a de Eugenio Gondim, no golpe de 64, e resolvo assentar-me na tenda de mestre Amaro, batendo sola no jornalismo.
Em dado momento me chega Nathanael Alves com o mesmo tom de voz de todos dias, mas com uma novidade: “Essa coisa que você está fazendo está sendo dada em aula, na escola pública”.
– Uma professora está dando aula com a nossa crônica do jeito que a Olivina dava aula com Olavo Bilac ou Coelho Neto.
O jeito, em verdade, era muito diferente. Nem veio a ser tão radical quanto o que se ministrava na fase de aprendizado no Rio.
Mas a comoção não me pegou menos que a do mais generoso dos títulos até hoje recebidos. Naquele momento, desci sozinho as escadas do jornal e fui desumedecer meus olhos na praça que, vinte anos antes, eu olhava da janela da delegacia, feito escrivão de polícia, perguntando aos oitizeiros: até quando, até quando?
O ensaio original e preciso de Ângela Bezerra de Castro logo se impôs à comissão julgadora como um texto que, de fato, merecia a láureaDra. Ângela Bezerra de Castro acrescentava mais um dom, uma virtude, um talento aos do perfil que vimos, rapidamente, nas referências de Neroaldo e Hildeberto: ela operava o milagre de restituir o ânimo, o sonho de um rapaz que aqui chegara com seu caderno de versos e que cedo passara a ter vergonha deles. Que chegara com Humberto de Campos e se desiludira, abraçado ao negro Lima Barreto, e tombado, em seus sonhos, por toda a sorte de tropeços.
A nota de sua presença externa na crítica literária vem de quem lhe viu triunfar, por unanimidade, no concurso da Fundação casa de José Américo, com apoio da José Olympio, o mesmo escritor e crítico de José Lins do Rego, o professor Antonio Carlos Vilaça. Vale a transcrição:
“O ensaio original e preciso de Ângela Maria Bezerra de Castro logo se impôs à comissão julgadora como um texto que, de fato, merecia a láurea. (...) A escolha foi imediata e unânime. (...) O prêmio José Américo de Almeida de Literatura 1987 veio coroar uma obra de inteira lucidez crítica (...) A jovem autora deixou de lado os elogios repetidos, os clichês enfadonhos, os lugares-comuns da crítica e se entregou a uma re-interpretação. Uma crítica propriamente global, universal, em que entram todos os elementos que soube recolher — os estilísticos, os psicológicos, os sociológicos, os ecológicos, a visão total desse romance marco, que consagrou um ator”.
A autora teve um modo próprio de ler.
* pronunciado a convite da Confraria Sol das Letras, no evento “Pôr do Sol Literário”, na APL
Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL