Umas simples estrelinhas de São João. Vocês sabem do que se trata. Elas são o mais inofensivo, o mais humilde e o mais sem graça dos fogos ...

As estrelinhas de Cony e as minhas

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Umas simples estrelinhas de São João. Vocês sabem do que se trata. Elas são o mais inofensivo, o mais humilde e o mais sem graça dos fogos juninos. Normalmente são compradas para as crianças menores e mais bobinhas, as que não podem ainda se arriscar nas bombas e foguetões. Se os seus destinatários não fossem mesmo tolinhos, por conta da pouca idade, certamente sentir-se-iam discriminados por receberem, para celebrar a festa do mês de junho, os fogos mais simplórios, ao contrário dos outros, os mais velhos, com seus artefatos barulhentos e brilhantes. As estrelinhas não emitem qualquer som e a pouca luz que produzem, quando acesas, é menor que a de um vagalume.

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Carlos Heitor Cony
Imaginem então um menino já crescido, quase adolescente e já seminarista, recebendo do padre responsável, numa antiga noite junina dos anos 1930, um pacote de estrelinhas para festejar o São João, enquanto aos seus colegas, de idade e tamanho semelhantes, eram distribuídos fogos os mais diversos e potentes. Pois bem, esse menino, que tinha apenas um problema na fala, que lhe dificultava a normal articulação das palavras, mas que, fora isso, era absolutamente normal e talvez até de inteligência superior à média, sentiu-se injustamente diferenciado dos demais companheiros, como se fosse um retardado mental ou algo parecido, tendo se traumatizado e nunca mais esquecido essa cruel vivência infantil. Tal criança chamava-se Carlos Heitor Cony e viria a tornar-se um dos mais importantes escritores brasileiros do século XX.

Também tive minhas estrelinhas na infância. De um outro tipo, é certo, mas não menos impactantes. Saltemos, pois, três décadas, e já nos anos 1960 imaginemos um menino que só há pouco abandonara as calças curtas, descobrindo a vida com olhos e coração absolutamente virgens, aluno do quarto ano do então Curso Primário (atual Ensino Fundamental), na Escola Modelo, ali na Camilo de Holanda, por trás do Liceu, ambos então dos melhores estabelecimentos públicos de ensino da cidade, realmente modelos.

o que posso dizer é que aquela discriminação, aos meus olhos injusta e injustificada, marcou-me fundo a sensibilidade
Esse menino, do qual, acreditem, lembro-me perfeitamente bem, era, como não poderia deixar de ser naquela idade e naquele tempo, sensível e completamente inocente a respeito da máquina do mundo, suas engrenagens e funcionamento. Acostumado até então com a edênica igualdade que regia as crianças de sua convivência, não estava de nenhum modo preparado para conhecer, da pior forma possível, as diferenças que separavam e separam as pessoas na sociedade. Vamos aos fatos.

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Um certo dia, eis que chegam na classe do menino, certamente transferidos de outra escola, dois alunos novos, da mesma faixa etária dos demais colegas e, diga-se, da mesma mediania da maioria, quanto ao aproveitamento escolar. Pois bem, a simples chegada desses dois foi o bastante para mudar completamente o ambiente mais ou menos igualitário que até então reinava na classe. As professoras, a partir daí, passaram literalmente a se desmanchar em atenções e cuidados para com os novatos, como se príncipes fossem (seriam?), parentes que eram do governante estadual. Não que as docentes, boas pessoas, a bem da verdade, tivessem passado a tratar mal os demais alunos. Não. O problema é que tratavam os dois príncipes bem demais, dando na vista de todos, sem nenhum pudor, ali, na modesta sala de aula da escola pública, a divisão atroz, nítida e indisfarçada entre os eleitos e os excluídos, tal como havia no grande mundo, realidade ainda ignorada, talvez somente suspeitada, pelos infantes. Pode-se imaginar o que isso terá causado de impacto e de dor no casto coração das pequenas vítimas...

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Não sei como meus colegas viram e sentiram tudo aquilo, porque nunca conversamos a respeito, nem então nem depois. De minha parte, o que posso dizer é que aquela discriminação, aos meus olhos injusta e injustificada, marcou-me fundo a sensibilidade, a própria alma, posso afirmar, a tal ponto que a considero uma das experiências fundadoras de minha personalidade retraída. Imagino que possa ter pensado, à época: Então é assim que é o mundo: uns valem mais que outros – e eu estou entre estes últimos, os que menos valem. Que precoce, soberba e dolorosa lição de política e sociologia, aquela que tinham me dado, sem saber, as pragmáticas professoras...

Mais recentemente, quando ouvi o já idoso Cony falar de suas inesquecíveis estrelinhas do Seminário, em entrevista dada a Roberto D’Ávila, lembrei-me logo das minhas da Escola Modelo, sem saber, das duas, quais as que doeram mais no impressionável espírito daqueles dois meninos de antigamente.


Francisco Gil Messias é cronista e ex-procurador-geral da UFPB

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