Sobre o sensualismo de Drummond e a presença do erotismo em sua poesia muito se tem escrito. E é fato. O poeta foi sempre muito sensível às coisas de Eros e o revelou desde o começo. Lá no primeiro poema (Poema de Sete Faces) de seu primeiro livro (Alguma poesia) já se vê o registro explícito do sexo como algo incontornável: “As casas espiam os homens/que correm atrás de mulheres./A tarde talvez fosse azul/não houvesse tantos desejos.”.
Concluída a obra poética de Drummond, os estudiosos tendem a dividi-la em quatro fases, facilmente identificáveis para o leitor mais atento. A primeira (Alguma poesia e Brejo das almas), é a do conflito com o mundo, a do gauche, a do coração do poeta esquivo maior que o mundo. A segunda (Sentimento do mundo, José e A rosa do povo) , a do diálogo com o mundo, da inserção social do poeta na realidade, a do poeta engajado, em que seu coração fica do tamanho do mundo. A terceira (Claro enigma, Viola de bolso, Fazendeiro do ar, A vida passada a limpo, Lição de Coisas, A falta que ama, As impurezas do branco, Discurso de primavera, Boitempo e A paixão medida), a da introspecção metafísica, da “viagem ao interior de si mesmo”, na qual o coração do poeta se reconhece menor que o mundo, nele não cabendo nem suas próprias mágoas, vejam só. E finalmente a quarta fase (Corpo, Amar se aprende amando e O amor natural), a da velhice ou quase velhice, em que o poeta canta o amor, o corpo e o sexo em todo seu esplendor vital, num verdadeiro desafio a Tânatos, que se aproximava. E aí temos (em O amor natural), sem nenhum pudor, mas com extrema elegância, os versos do poema “Amor – pois que é palavra essencial” ( poema)
Como bem observou Antonio Carlos Villaça, nessa fase outonal, no limiar da velhice, “Não é mais o individualismo tenso e triste, de Belo Horizonte outrora, na juventude inquieta e insatisfeita. Não é mais a guerra com a batalha de Stalingrado. Não são mais os edifícios. Não é mais a reflexão existencial. Agora, é o diálogo com o corpo, renovado.”. Agora (então) é a assumida celebração da sensualidade cultivada, afirmação impetuosa da vida perante a morte ameaçadora.
Fiquei embasbacado, observando-o, até ele desaparecer em meio à multidão
No coração de Drummond de fato couberam muitos amores. Ele estava sempre atento aos encantos femininos, em todo lugar. Não que fosse rudemente galinha. Não. Ele era antes de tudo um esteta especial, sensível aos apelos de mulheres interessantes, não necessariamente belas. Seus casos mais conhecidos foram com Eneida, a paraense intelectual, com Célia Neves e com Lígia Fernandes, esta última uma relação de mais de trinta anos, presenciada por mim, por puro acaso, ora vejam, já no ocaso do poeta. Estava eu uma tarde de sábado na Visconde de Pirajá, em Ipanema, quando avistei, ao longe, um casal que vinha em minha direção, pela calçada. Era um senhor visivelmente idoso, elegante, de “blaser”, de braço dado com uma senhora aparentando meia-idade. Achei-o parecido com Drummond, que conhecia apenas de fotografia, e fiquei curioso, prestando atenção. À medida que o casal se aproximava, constatei que era ele realmente. O coração bateu forte. Não acreditei. Mas era verdade. O poeta aproximou-se sem pressa, passou por mim, bem próximo, e seguiu adiante. Fiquei embasbacado, observando-o, até ele desaparecer em meio à multidão. Como diria Bandeira, foi um alumbramento.
Aqui é importante registrar que, a despeito de seu coração imenso, o poeta nunca deixou de amar Dolores, a esposa que um dia quis deixá-lo. Mas ele pediu-lhe para ficar (“Que seria de mim sem você?”) e ela aceitou, até o fim. Mulher sábia.
É muito interessante essa sensualidade de Drummond, um homem sabidamente tímido, reservado, de poucos derramamentos emotivos. É um daqueles casos em que uma coisa não combina com a outra. Quem não o conhecesse mais de perto e o visse na rua, ensimesmado, não adivinharia nunca o alegre fauno que havia nele.
E um detalhe: a publicação dos poemas eróticos drummondianos não se deu de repente, de uma só vez, já em livro. Não. Ela foi se dando aos poucos, um poema aqui, outro acolá, dados a público em revistas masculinas da época. O fato é que havia uma espécie de “patrulha” moral conservadora que inibia a publicação ostensiva de tais poemas, como se eles atentassem contra a respeitabilidade do poeta consagrado. Nesse sentido, um livro como “O amor natural”, totalmente dedicado à louvação de Eros, representou a corajosa libertação do poeta da referida censura.
Enfim, sabemos todos que, na vida, a vitória final é sempre de Tânatos. E talvez seja melhor assim, para que o homem não cultive a soberba. Mas na poética de Drummond constata-se, sem dúvida, um derradeiro triunfo de Eros, deus poderoso que pairou sobre ele até mesmo quando o seu velho corpo já não correspondia aos seus ímpetos. É o que se vê, bela e melancolicamente, no poema “Restos”, do livro que encerra oficialmente sua obra, “Farewell”, com o que, em negrito, encerro, reverente, este breve texto:
O amor, o pobre amor estava putrefato.
Bateu, bateu à velha porta, inutilmente.
Não pude agasalhá-lo: ofendia o olfato.
Muito embora o escutasse, eu de mim era ausente.
Bateu, bateu à velha porta, inutilmente.
Não pude agasalhá-lo: ofendia o olfato.
Muito embora o escutasse, eu de mim era ausente.
Francisco Gil Messias é cronista e ex-procurador-geral da UFPB