Naquela manhã de sábado, ao entrar pelos fundos para guardar a bicicleta no quartinho, estaquei à porta da cozinha, alarmado e curioso com a movimentação em casa. Tia Madrinha tentava consolar Mamãe de alguma aflição, e ela, entre um soluço e outro, murmurava, não, não pode ser possível, o Major Jacobina, não, e Dona Felícia martelava, que a notícia estava bem ali, estampada na primeira página do jornal, com fotografia e tudo mais, inclusive depoimentos de várias pessoas, que lesse, conferisse, e se acalmasse, afinal, não havia o que fazer, o ser humano era bicho de natureza escura e deslizante, pedra limosa em águas profundas, onde existia o sopro de uma alma, existiam dois ou três, quem sabe, mais. Em cada homem, minha querida, sentenciava Dona Felícia com voz consternada, há muitos homens.
Contei-lhe o que considerava o meu único segredo, a vergonha e a tristeza que eu sentia por não conhecer meu paiUma enorme pedra de gelo tomou o lugar do meu coração. O Major Jacobina era o melhor homem que eu conhecera, o mais gentil e generoso. E embora fosse de poucas palavras, todos em nossa rua gostavam dele, inclusive Mamãe, que vivia lhe pedindo favores, certamente porque em casa lhe faltava um marido, e comigo não podia contar, pelo menos para certos serviços, ainda não. Um dia, quando eu crescesse e me tornasse um homem, gostaria de parecer com ele, assim, sábio e valente, sem ser esnobe, firme e respeitado, sem que fosse temido. De verdade, eu desejava que o meu pai fosse o Major Jacobina, porque aquele do retrato amarelado que eu encontrara nas coisas bem guardadas de Mamãe não valia. Um branquelo bigodudo de pescoço fino, que a abandonara quando ela lhe contara de mim, que eu estava a caminho. Mulher, filhos, família, essas coisas definitivamente não interessavam ao meu pai. Foi a filha de Dona Felícia quem me contou sobre o tal, porque, por Mamãe, não iria ficar sabendo nunca. Perguntar, eu não perguntava, que para isso me faltava coragem. Cada vez que, estando juntos, alguém pronunciava a palavra proibida, ela abaixava a cabeça e os olhos, num embaraço de dar dó. Imagine se eu iria contrariá-la com aquele assunto de pai desaparecido.
Então, o Major Jacobina veio morar em nossa rua, quase em frente à nossa casa e, aos poucos, foi nos seduzindo com a sua atenção e bom humor, tanto, que o bigodudo e a sua ausência em nossas vidas, na minha e na de Mamãe, acabaram desbotados, esquecidos, por assim dizer, em algum fundo de gaveta dos nossos corações. Não sabia quantos anos tinha o Major. Talvez fosse velho, pois seus cabelos embranqueciam todo dia mais um pouco, mas, ao mesmo tempo, parecia mais jovem do que outros homens que eu conhecia, porque se vestia com elegância e estava sempre cheirando à lavanda Yardley, pronto para ir a uma festa, e andava bem aprumado, com passos seguros e um ar de eterno contentamento, que eu não costumava enxergar em pessoas de idade.
Mamãe costumava dizer, o senhor é um homem bom, Major, não só para agradecer os favores que ele lhe prestava, mas porque pensava isso mesmo, e ele sacudia a cabeça de um lado para o outro, sorrindo e negando, embaraçado com o elogio, e escondia os olhos, resmungando um ora, ora!, que eu não sabia exatamente o que significava. Acabado o serviço, costumava aceitar uma xícara grande de café com leite e uns sequilhos de araruta que Mamãe preparava especialmente para ele. Ao Major Jacobina, ela dizia, nunca faltam apetite nem disposição para trabalhar. Sentávamos à mesa, eu e o Major, enquanto ela permanecia em pé, observando-nos em silêncio, esperando a aprovação dele, que sempre vinha com um hum prolongado de satisfação.
Encanador, eletricista, pedreiro, carregador, consertador de objetos desmantelados. Para tudo e em qualquer coisa, o Major sempre dava um jeito. E ainda entendia de doenças. As pessoas da nossa rua sentiam uma dorzinha e já mandavam chamar o Major Jacobina. Reumatismo, alergia, bronquite, faringite e outros “ites” mais, ele diagnosticava com um toque aqui, uma pergunta ali. Só não se atrevia a receitar. Era chá disso, chá daquilo, que de chá ele entendia muitíssimo. E quase sempre os doentes se recuperavam. Somente quando a coisa era grave, é que mandava procurar um médico.
gostaria de parecer com ele, assim, sábio e valente, sem ser esnobe, firme e respeitado, sem que fosse temidoTinha mulher e duas filhas casadas, uma delas morando em outra cidade. Ele nunca mencionava o nome de nenhuma das duas, nem nenhuma delas costumava visitá-lo. Uma vez, Mamãe perguntou-lhe se tinha netos e ele fez de conta que não havia escutado, como se este assunto o constrangesse. A mulher do Major se chamava Nélida e parecia uma pessoa do bem, assim, lá no canto dela, só se mostrando para ir à feira ou à missa, cumprimentando-nos com um repuxado nos lábios, que para alguns poderia ser um sorriso. Mamãe achava que aquele sorriso não estava à altura da condição de mulher do Major Jacobina. Para mim, também, faltavam dentes e covas no sorriso de Dona Nélida, e faltavam outras coisas mais, que eu não conseguia determinar. Sorriso tinha que ser declarado, de cara inteira, como o de Mamãe, quando me tirava da cama para ir à escola, também quando eu voltava de lá, ou em época de festa, principalmente em final de ano, tempo de muitas encomendas de costura e bordado.
Às vezes, ia até a casa do Major e, nessas horas, eu me sentia muito feliz e importante, porque garoto nenhum da rua podia se gabar de ter sido convidado uma vez sequer a visitá-lo. Mamãe costumava dizer que a nossa amizade era rara, porque tínhamos muitas diferenças, a começar pela idade, mas que não causava estranheza, porque o Major, apesar de reservado, era prestativo e envolvente, capaz de inspirar confiança em qualquer pessoa do mundo. Um espírito nobre. Por que o Major gostava de mim, eu não sabia dizer, não. O que eu sabia mesmo é que era um perguntador insistente e que isso costumava aborrecer os adultos, sendo, o Major, o único que nunca me deixava sem respostas, e que ainda ria da minha curiosidade.
Enquanto meus amigos se reuniam no campinho para jogar futebol, brincar de barra-bandeira ou apostar no “bafo” as figurinhas mais cobiçadas, eu fazia companhia ao Major Jacobina em seu quarto-escritório. Fotografias emolduradas se espalhavam pelas paredes, e para cada uma delas o Major tinha uma história que, entre uma baforada e outra de charuto, contava com riqueza de detalhes. Como ele mesmo dizia, episódios de uma vida dedicada ao cumprimento do seu dever, que era a defesa de nossa pátria. No início da carreira militar, o Major não tinha dinheiro nem para comprar a farda, e lá estavam, na foto descorada, os amigos que tinham se cotizado para comprá-la. Ali, a mãe do Major, no dia da sua nomeação como oficial, o melhor vestido e o orgulho no olhar derramado sobre o filho. Um dia, a Tia Marcolina viera de longe, da solidão assombrada do sítio onde vivia, para fazer pose abraçada ao sobrinho de futuro brilhante. Aqui, ao lado do Major, o General que um dia chegou a Presidente, quando sua patente ainda era a de coronel, magro e pálido, com nome e cara de estrangeiro, o peito colorido de medalhas. De todas aquelas fotos, a que eu achava mais bonita era a do Major Jacobina desfilando em tropa pelas ruas da cidade, em dia de parada pela comemoração de nossa independência, solene em sua farda de gala, a perna levemente erguida no passo cadenciado da marcha.
Ao seu lado, eu seguia em silêncio também, levemente entontecido de uma felicidade que tinha cheiro de couro e lavanda inglesaNunca pude saber se o que aguava os olhos do Major nesses momentos eram as tais fotografias, os distintivos guardados numa caixa com tampo de vidro e forro de veludo vermelho, a coleção de armas, as lembranças de um passado de glória, ou a fumaça do seu charuto. Faltava-me coragem para lhe perguntar. Também para lhe confessar o quanto eu o estimava e admirava, e como suas histórias de caserna mexiam com o meu imaginário. Treinamentos, manobras, simulações. Disciplina, resistência, aprendizado. Um mundo mágico, de homens bravos e leais, dispostos a matar e a morrer por seu povo, por seu país. Assim como no cinema. Só que as histórias do Major eram melhores que as do cinema, mais fascinantes, mais excitantes, porque, ali, o roteiro era real. Imagens, odores, sons, tudo estava escrito em sua memória, em todos aqueles objetos, que eram o seu tesouro.
Mamãe me dissera um dia que os verdadeiros amigos são aqueles que compartilham os nossos segredos. E foi sabendo disso que decidi tornar o Major um “verdadeiro amigo”. Contei-lhe o que considerava o meu único segredo, a vergonha e a tristeza que eu sentia por não conhecer meu pai, e como essa tristeza e essa vergonha me perseguiam sem trégua, e cresciam quando não acontecia nada, principalmente na escuridão das noites, não me deixando pegar no sono. O Major Jacobina apenas murmurou um ora, ora!, e me deu um tapinha nas costas e foi me puxando para a cozinha, e embora não tenha me consolado com um falatório de gente grande, como eu esperava, o seu olhar era verdadeiramente o olhar de um amigo, claro de compreensão e solidariedade. Nesse dia, preparou-me uma omelete de queijo e presunto, que eu comi gemendo de prazer, esquecido do segredo e dos sentimentos que ele me provocava.
Algumas vezes levou-me a passear pela cidade em seu Ford Landau 74, o rabo-de-peixe mais lindo que eu já vira, com painel de madeira, controlador de velocidade, rádio, toca-fitas, teto de vinil e bancada de couro. Não era lá assim tão novo, mas muito bem conservado. O Major dirigia com suavidade, ouvindo Benito de Paula, tão concentrado na música ou nos seus pensamentos, que era como se dormisse de olhos abertos. Ao seu lado, eu seguia em silêncio também, levemente entontecido de uma felicidade que tinha cheiro de couro e lavanda inglesa. Deitava a cabeça na janela para sentir o sol no rosto e o vento nos cabelos, e as coisas da rua iam se enchendo do meu olhar e passando, passando, uma atrás da outra, como se eu as visse por um caleidoscópio gigante, prédios, casas, letreiros, carros, árvores, praças, pessoas, bancas de jornal... Quando eu crescesse, iria ser um homem cheio de idéias e de histórias como o Major Jacobina, e ter um carrão como o do Major Jacobina, e uma esposa como Mamãe, que o modelo de Dona Nélida não me servia, com aquele sorriso derrotado, que não combinava em nada com o Major.
mais cedo ou mais tarde iria ficar sabendo, melhor não me iludir, que eu ficasse ciente logo de tudoEntão, era isso. Denunciado e foragido. Não podia acreditar. Torturador, o Major, o meu Major? Devia haver um engano. Uma vida clandestina, uma vida que ocultava outras vidas? Devia se tratar de um outro Major, não o nosso Major Jacobina. Responsável pelo desaparecimento de pessoas. O que significava aquilo? Não, eu não queria ouvir mais uma palavra. Não, nenhuma explicação. Tudo não passava de um pavoroso mal-entendido. Acontece que o jornal estampava uma fotografia dele, sim, mais jovem e mais magro, fardado e sorridente, uma carabina cruzando-lhe o peito, de uma mão a outra, e Mamãe quis me impedir de ler, mas Tia Madrinha disse que eu já era um rapazinho, e mais cedo ou mais tarde iria ficar sabendo, melhor não me iludir, que eu ficasse ciente logo de tudo. Uma enorme pedra de gelo tomou o lugar do meu coração. Queria fechar os olhos e dormir dias e dias, até acordar e descobrir que tudo não passava de um pesadelo, o pior de todos. Queria passar o resto da vida escondido num lugar onde eu não pudesse ver ninguém, nem Mamãe, nem Tia Madrinha, nem Dona Felícia, nem o Major, nunca mais.
Voltei para a rua, desta vez, a pé, e andei durante muito tempo com uma coisa ruim embolando em minha barriga e bloqueando minha respiração. Transpirava de tanto calor e tremia de um frio esquisito, uma sensação parecida com aquela quando andei de roda-gigante a primeira vez. Passei pela casa toda fechada do Major, e atravessei o campinho, e fui adiante, e desci o barranco, passando por terrenos baldios cheios de mato, até alcançar o rio lá embaixo, deserto e manchado de sol, com aquele ruído triste vindo de suas águas, uma espécie de sussurro, um segredo que o rio contava e que as pessoas não conseguiam ouvir. Aproximei-me e vi minha imagem tremulando no espelho d´água, um medo sem nome no meu rosto de feições cambiantes. Então, lembrei-me de Dona Felícia e das palavras dirigidas a Mamãe. Seriam as pessoas imagens refletidas na água, esgarçadas, incertas, vacilantes?
Escorreguei para o chão e me deitei de bruços, afundando o rosto na terra úmida. Primeiro, vomitei. Depois, vieram as lágrimas.
Marília Arnaud é bacharel em direito e escritora