A máquina de costura nova, em que as tias cosiam e emendavam suas peças... Conversavam com a vida mansa, traziam o tempo do sítio, as praias frequentadas por crianças nuas, sacudindo entre as espumas que se derramavam sobre a areia branca.
Era animada palestra sem remendos, cerzidos de uma época em que se poderia crer no retorno do passado. A máquina de costura comprada pelo irmão mais velho, Singer, fabricada nos Estados Unidos, o orgulho das tardes mornas do final da casa e que sopravam para dentro da sala um sossego de sono vesperal.
Fora, os meninos brincavam. Não havia TV. O som do rádio lançando os sucessos do carnaval, logo depois que passava a entrada do Ano Novo. Palavreado ameno, cantigas recordadas, recortadas recordações que se iam chuleando, emendando a saudade aplicada na toalha ou o tricô já pronto descansando na cadeira de balanço.
Costuravam o tempo como se ele fosse mágico. Tocavam os tecidos, a seda escorregadia, o tafetá, o linho puro e sentiam a textura do temporal. Chovia muito no inverno e elas rodeando a máquina de costura, cada vez mais aconchegadas, os fios enfiados na agulha, o frio entrando pelas frestas das janelas mal fechadas, uma das tias, sem enxergar direito, os óculos trincados nas lentes, lutando por enfiar a linha corrente na agulha.
A corrente das bátegas pelos chãos nus do oitão, das escadarias, da rua num alvoroço de liberdade, a cobrir as pedras carunchadas do leito onde dormiam paralelepípedos mal colocados, sem simetrias cuidadas.
As tias gostavam de consumir os moldes trazidos pelas revistas mal impressas, em preto e branco, modelos desenhados, mocinhas dengosas de narizes pontudos, vestidos onde abundavam botões, saias godês, mangas três quartos. O casarão tinha cinco quartos. Elas dormiam em suas camas antigas, patentes, ao som da chuva, agora mais carinhosa, riam muito sobre os namorados que arranjavam nas vesperais animadas do cassino da lagoa. Anos de pós-guerra mundial, despontar dos anos cinquenta. Moravam sozinhas, enquanto pedalavam a formosa máquina de costura presenteada pelo irmão mais velho. Um sucesso: a agulha fazendo e desfazendo a fazenda que, depois de adornada, iria cair bem nas camas, nas fronhas dos travesseiros, na proteção dos sofás, das poltronas cobertas de tecido damasco.
Pode parecer algo trivial bordar em máquina de costura. Transborda, porém, a recordação daqueles dias idos e vividos dentro de uma ingenuidade e pureza com que elas se esmeravam em cuidar das costuras nada profissionais, na utopia de reter entre os dedos o abstrato tempo de paz, risadas naturais como o perfume da lavanda usada por elas. Um cheiro forte de serenidade na suave fragrância que exalavam.
José Leite Guerra é bacharelem direito, poeta e cronista