Algumas vezes a revisão do jornal se arrastava até a madrugada. Fosse por algum ato de última hora ou pela onda de oposição que começava a ...

Sobrou o ângulo

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Algumas vezes a revisão do jornal se arrastava até a madrugada. Fosse por algum ato de última hora ou pela onda de oposição que começava a abalar a cabeça e os porões do Catete. “Mar de lama”, no discurso de Afonso Arinos, com maremoto no atentado a Lacerda. Na Paraíba mesmo ecoou forte o anátema saído do discurso de um dos nossos senadores, Argemiro de Figueiredo: “É preciso matar este governo para que sobreviva a nação”. O imã dos acontecimentos neutralizava a cantilena dos revisores em cima da prova tipográfica. Dois revisores para cada texto, um escandindo a leitura e o outro correndo os olhos no texto.

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Mourejávamos, uns seis, num compartimento pegado com a redação, o ambiente mais nobre do jornal. Nobre pela figuração que o passado dos seus redatores nos remetia, a começar do fundador Antônio da Gama e Mello, autor do primeiro editorial, modelo de advogado, professor e político, depois presidente do Estado. E, mais ainda, exemplo de homem público cônscio dos seus horizontes e limites. Vizinho de casa e de conversa do major Floriano, declinou de convite para ser ministro da Justiça quando o major, de general se tornou presidente da República. Gama e Mello não alegou doença ou razão outra que se pudesse sobrepor à subida de um provinciano ao ministério mais próximo da presidência da República. Justificou, simplesmente, que não estava à altura, preferindo, para mais adiante, um lugar na alfândega local.

Os que vieram na sequência de Carlos Dias Fernandes no jornal A União foram acumulando, no tempo, essas medalhas e florões, ainda que o café com pão da noite apetecesse melhor sem o agrado da manteiga.

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Pois bem, por mais rançoso que fosse o tempero e inseguro o pequeno salário (recebíamos na folha de pessoal de obra), a saleta onde nos apertávamos dava para as varandas de colunas e capitéis romanos abertas à praça cívica com seu entorno monumental de glórias. Lá, uma ou outra vez, um veterano ilustre da redação vinha dar o ar da sua graça em nossa mesa. Num fim de tarde, o sol fechando a cal de ouro dos palácios, Seu Wilson Madruga veio me surpreender, eu sozinho, na varanda, meu olhar parado em algum pensamento. Era ele o redator-chefe com placas de letras góticas no birô. Mas o gótico era só de espírito e um pouco no rosto ogival; a sua pessoa, quer pelo temperamento, quer pela idade, destoava da reserva dos seus pares, jovens na maioria, muito presunçosos do seu futuro.

A varanda estava ali, enquadrando os palácios, o convento, a estátua monumental e aquele meu sonho, que se fez descer com a tarde crepuscular
- Tem aspirações? – perguntou-me maneiroso, a mão ocultando o queixo e a boca, dissimulando a indulgente ironia do riso e do olhar. Não lembro mais o que respondi. Certamente nada, ao me ver abordado pelo homem a quem toda a redação rendia homenagens. Principalmente o diretor, Juarez Batista, o mais desenvolto e brilhante deles.

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Ainda não sei explicar, decorrido tanto tempo. Mas anos depois, quando cheguei a secretário do jornal, algo me pedia que retivesse aquele lance de memória enquanto permitisse o tempo, mesmo sem o velho Wilson, já recolhido em sua casa de conjunto nos Expedicionários.

A varanda estava ali, enquadrando os palácios, o convento, a estátua monumental e aquele meu sonho, que se fez descer com a tarde crepuscular. Chamei Mororó, desenhei-lhe a ideia da imagem, e o baixote da minha predileção fixou tudo aquilo numa fotografia que Barreto Neto adorava. Mais novo, Barreto era desse tempo. Colocou-a depois em seu gabinete de diretor-técnico, num recurso para preservar a imagem helênica do prédio antigo, onde ele também começara. E terminou tudo se indo, o ângulo neoclássico, o prédio inteiro, Seu Wilson, o fotógrafo, Barreto, muita gente... E fiquemos por aqui, que o tempo não está para essas conversas.


Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL

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