O trato continuado com a ensaística de Ângela Bezerra de Castro não dá margem a assomos de surpresa com a sua poesia. Ela não tem feito outra coisa, desde que se dedica ao cultivo literário, senão exercícios de percepção poética. Se o resultado ganha a aparência de ensaio ou discurso, não seja por isso, pela forma comum, que ele se dissocie do conteúdo poético. Boa parte das pessoas que se confessaram surpresas com aquele mínimo de espaço transbordante de poesia, trazido a público no blog de Germano Romero, se disso não sabiam, bem o pressentiam.
O saber da boa crítica é sempre achado poético. Tristão de Ataíde, que eu saiba, não cometeu versos, mas de onde vem a clareza inexcedível dos seus estudos, da sua estética? Assim Álvaro Lins (falo dos que li) e boa parte dos que se enfileiram nas artes de Antônio Cândido. Entre nós, Juarez Batista foi buscar estilo no Código Civil de Bevilacqua ou na prosa poética de Gilberto Freyre que Guerreiro Ramos jurava ser tudo menos sociologia. “Nordeste” é o nosso grande poema à região de seca e de massapê, agarrada aos nossos pés como garanhona.
Ângela teve formação acadêmica, bons professores, andou por velhas e moderníssimas teorias, leu de Alencar a Fernando Pessoa, mas tem sido na poesia a sua melhor colheita. Talvez a teoria literária lhe assegure ossatura, autoridade, o parâmetro, mas vêm do condão poético os seus melhores ou mais ricos achados. Ajudada, certamente, por uma lógica que lampeja clareza.
“Um certo modo de ler” denota, já no título, a peculiaridade da leitura. Num dos ensaios dedicados a Odilon Ribeiro Coutinho, um usineiro de diferentes açúcares, cultor das artes, ensaísta avulso, ela achou um verso de Alberto Caeiro para a sua abertura:
“Um dia deu-me o sono como a qualquer criança. Fechei os olhos e dormi”.
Achando pouco, recorre a Exupéry, poeta em prosa, filósofo em poesia: “Eu parecerei morto e não será verdade”. Traz para a abertura a poesia que Odilon não fez, mas feita de longe para ele. Não há poesia sem ouvinte ou leitor.
O poético domina a visão da humanista, das suas preferências de leitura, dos seus cuidados como professora e mestra. Mestra de alunos secundaristas, universitários e graúdos de outras ciências, como Tarcisio Burity, leitor de Kant, Kierkegaard, Unamuno, Keynes, mas ainda não leitor de Drummond. Respeitava mas passava por cima. E foi através de Ângela que esse homem de pensamento e de ação, cultor dos gregos, aderiu à lógica do “claro enigma” do poeta itabirano. Foi por aí que se prendeu mais diretamente ao primo João Cabral. E se viu tocado espiritualmente das luzes da amiga, sempre de claridade influente, persuasiva.
Ela não me surpreendeu poetando em linhas de versos. Sua prosa, se assim posso dizer, mina do que sempre mais admirou e entregou-se, sua única “planície alegre” ante “a aspereza orográfica do mundo”. Quando a nossa Academia reeditou a 2ª edição do EU, foi dela a escolha desses versos de abertura. Síntese e dupla confissão.
Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL